Por Chiara Santi
“É mais fácil enganar as pessoas, do que convencê-las de que elas foram enganadas.”
- Mark Twain
Naomi Wolf na sua obra O mito da beleza observa que após o ingresso das mulheres no mercado de trabalho e uma certa estagnação do movimento feminista e de suas pautas, uma nova opressão estava surgindo entre as mulheres: uma exigência pela perfeição. As estrelas de cinema posicionavam-se como um ideal a ser alcançado pelas mulheres comuns, no que tange à beleza e a aparência. Um fator alarmante para a autora foi uma crescente epidemia de transtornos alimentares, como a anorexia e bulimia. Ela diz sobre seu objetivo “o que defendo neste livro é o direito de que a mulher escolha a aparência que deseja ter e o que ela deseja ser, em vez de obedecer ao que impõe as forças do mercado e a indústria multibilionária da propaganda” (WOLF, 2018, p.14, tradução Waldéa Barcellos).
Naomi Wolf aponta como um dos fomentadores desta insegurança sobre a aparência da mulher, as indústrias, empresas, revistas, propagandas, que lucravam em cima da necessidade feminina de se adequar ao padrão estabelecido de beleza pelos tabloides. Mas o que passava despercebido aos olhos de todos é que o padrão de beleza vendido não era natural, mas fabricado para entender aos interesses gananciosos daqueles que vendiam os produtos milagrosos de dietas, cremes rejuvenescedores e procedimentos de cirurgia estética.
Outro agente que contribui para a insegurança de adequação da beleza em um ideal inatingível de perfeição, foi a difusão da pornografia digital. Agora as mulheres precisavam lidar com a comparação com os corpos perfeitos (artificiais) que são ali exibidos e as realidades de suas vidas normais e imperfeitas. O mesmo mito da beleza que oprime as mulheres também atinge aos homens neste sentido. Porém, o que Naomi Wolf mostra, é que tais inseguranças foram produzidas pela própria sociedade, portanto, basta apenas que se esteja livre e desperto o suficiente, para não se deixar ser enganado pelo padrão de beleza imposto, e procurar aceitar-se exatamente como se verdadeiramente é.
O mito da beleza aparece então como uma resposta ao ingresso das mulheres no mercado de trabalho e um modo de autossabotagem interna dentro do próprio movimento de ascensão das mulheres, algo que mina seu poder de ação, plenitude e crescimento. O mito da beleza cria inseguranças e empecilhos para o sentimento de realização que as mulheres poderiam transparecer em suas vidas, se não fossem bombardeadas o tempo inteiro com crenças afirmando que elas estão sempre aquém do esperado. Seja pela sociedade, o emprego, as revistas e as propagandas. Na análise de Naomi Wolf, o mito da beleza surge como um controle social para impedir o sucesso das mulheres. A imagem da mulher como a dona de casa ideal é substituída pela pressão de atingir o ideal de ser bonita e perfeita. A autora diz o seguinte sobre o surgimento do mito da beleza:
Não existe nenhuma justificativa legítima de natureza biológica ou história para o mito da beleza. O que ele está fazendo às mulheres hoje em dia é consequência de algo não mais elevado do que a necessidade da cultura, da economia e da estrutura do poder contemporâneo de criar uma contraofensiva as mulheres. (WOLF,2018,p.30, tradução Waldéa Barcellos)
O mito da beleza faz a manutenção de uma estrutura que favorece aos homens visto que atua no campo da política e da divisão de tarefas do trabalho doméstico em casa, no qual acontece sob o formato da mulher ficar sobrecarregada em casa e no trabalho, não podendo dar o melhor de si no ambiente profissional, e isso ocorre por não conseguir demonstrar a energia necessária para isso e nem ter o tempo disponível para poder crescer na carreira sem impedimentos. E, obviamente, sofrendo com a pressão em atender o ideal de beleza para ser aceita nesses ambientes, uma exigência que faz a mulher gastar metade da sua renda em produtos e cuidados estéticos.
Tudo isso começou por volta de 1840, quando divulgaram as primeiras fotografias de prostituas nuas, incentivando a posterior criação de anúncios domésticos e trabalhistas com mulheres consideradas bonitas pelo padrão que foi estabelecido. A partir disso iniciou-se a intensa divulgação de imagens reproduzindo o que a cultura entende como sendo a beleza ideal. Favorecendo um amplo mercado da economia de produtos de beleza que se alimenta da insegurança criada pelas próprias propagandas que divulgam o ideal a ser alcançado. O mito da beleza se estruturou no lugar de ser uma mentira vital para manter a sociedade funcionando, as mulheres podem até se expandir, mas que elas nunca saibam que são boas o bastante para tal.
No mundo do trabalho e da economia, o mito da beleza se tornou um pilar importante de lucro. A beleza passou a ser um critério avaliativo para se conseguir um emprego, estabelecendo como pré-requisito uma boa aparência, e isto significa ser e tornar-se cada vez mais impecável. Como a autora diz “O mercado de trabalho refinou o mito da beleza como uma forma de legitimar a discriminação das mulheres no emprego” (WOLF, 2018, p.40, tradução Waldéa Barcellos). É uma forma de impedir a ascensão das mulheres no mercado profissional, da mesma forma que demonizou a luta feminista taxando-as como mulheres feias e masculinizadas. Uma forma de desmoralizar a luta pela igualdade de direitos das mulheres.
Toda essa estrutura ainda fez as mulheres se submeterem, desde o princípio nos tempos de guerra ao substituírem os homens nas fábricas, a aceitarem condições de trabalho na qual são mais desvalorizadas, justamente por lutarem tanto para conseguirem alguma oportunidade. Esses aspectos culminam criando a imagem da mulher de exceção, fruto da nova jornada de trabalho da mulher moderna: dona de casa, carreira estruturada e profissional de beleza em tempo integral. Criou-se então a qualificação de uma beleza profissional sob o formato de uma lei que está vigente somente no currículo feminino, aos homens isso não se aplica. As mulheres não precisam ser necessariamente qualificadas para o cargo, mas precisam ser bonitas e elegantes para estarem nele. E isso significa que elas precisam ser bonitas, magras e jovens, qualquer sinal fora deste padrão elas são despedidas ou nem sequer contratadas para alguma função. Para exemplificar isso, Naomi Wolf cita o caso das âncoras de jornal: uma mulher jovem e bonita ao lado de um homem mais velho de 40 anos para cima, na qual nenhuma exigência quanto a aparência dele era exigida previamente.
O mito da beleza age como um lembrete diário na vida das mulheres agindo com forte discriminação nos mínimos detalhes de sua existência, minando suas chances de realização pessoal plena e sem culpa. As mulheres estão constantemente preocupadas com suas aparências, e isso é introjetado como uma verdade nelas mesmas, sem perceberem que estão sendo bombardeadas por uma mentira inventada pela propaganda da indústria de comércios e dos farmacêuticos vendendo os remédios que agem como dietéticos milagrosos.
A supervalorização da beleza nas mulheres as fazem perceber que vender o seu corpo é mais lucrativo do que vender sua capacidade intelectiva e profissional. Sejam elas profissionais da moda ou prostitutas, elas são mais valorizadas financeiramente do que uma profissional comum em um cargo administrativo, que ainda ganha pouco, gasta metade de sua renda com a beleza e precisa realizar todas as tarefas domésticas em casa. E esse cenário ainda intensifica o sentimento de competição entre as mulheres, que as fazem lutar para conseguirem o lugar de exceção em suas carreiras, propagando a norma de que, no final das contas, “é cada uma por si”.
O padrão de beleza é introjetado como imutável, sem perceber que ele foi criado e propagado pela cultura até então vigente. Devido ao mundo real as mulheres não terem muitos exemplos de histórias de sucessos, elas buscam nos filmes e nas revistas essa compensação. As revistas femininas atuam como uma dupla função, elas são os artigos que valorizam os assuntos tipicamente femininos e que acompanharam boa parte da transformação histórica e social da mulher. Desde o período das donas de casa eficientes, vendendo produtos de limpeza e artigos para casa revestidos de satisfação pessoal e espiritual, com propagandas intensivas reforçando este ideal, como também acompanhando o ingresso das mulheres no mercado de trabalho, incentivando com dicas para ser a profissional mais perfeita e impecável com as dicas de moda e beleza.
Mas as revistas também reforçam aos anseios do mito da beleza na propagação da insegurança quanto a realização plena da mulher, as mulheres não podem ser conscientes emancipadas demais a ponto de deixarem de consumir as revistas femininas e seus produtos da moda. Dessa forma, o mito da beleza segue operando no que diz respeito a divulgação do interesse puramente econômico, propaganda as imagens das mulheres-modelo, nas quais nunca se vê uma mulher mais velha aparentando a sua verdadeira idade, porque todas as fotografias s~~ao alteradas por meio de edição, o que faz uma mulher comum no seu dia a dia achar que está sempre longe de atingir o ideal esperado, porque nunca se vê verdadeiramente representada dentro do padrão. O problema está em consumir esse conteúdo acreditando que ele é uma verdade universal, quando na realidade ele foi forjado para parecer assim pela cultura e sociedade.
Ao comparar o mito da beleza como um ritual específico para a vida de todas as mulheres, Naomi Wolf faz uma analogia com a estrutura de uma religião, observando que o mito da beleza ocupou o espaço vazio deixado pela influência e controle da igreja católica, como foi no período medieval. Os Ritos da beleza servem para instaurar um novo sistema de crenças que se impõem como verdades na vida das mulheres com a intenção de reprimir a potencialidade da natureza feminina, culpabilizando-a por não ser perfeita o suficiente em sua aparência. O mito da beleza no formato de um ritual trás a salvação de uma religião que por um lado vai culpabilizar suas fiéis, enquanto exige uma total submissão delas ao seu sistema para que a salvação aconteça.
Considerações Finais
Como um movimento de solução e de transformação social, o primeiro passo deve ser uma tomada de consciência sobre como essa estrutura funciona, para que ninguém seja presa fácil do controle e da insegurança introjetada pelas propagandas que vendem o padrão de beleza estabelecido. Perceber que ele não é algo natural, mas que foi forjado para atender os interesses de um grupo específico, que tem por objetivo minar o avanço das mulheres na sociedade. Para isso, faz-se necessário uma renovação do amor próprio para não se deixar mais cair em tentação de ceder aos impulsos recebidos pela propaganda. E não reproduzir mais em si mesma as crenças limitantes recebidas e nem projetá-las em outras mulheres. Quebrar o ciclo do controle e da dominação dos corpos femininos, redescobrindo a potência de uma vida saudável de acordo com a sua própria natureza e com quem se verdadeiramente é. Depois, quem sabe, com essa nova tomada de consciência, a sociedade vá se adequando aos poucos as novas exigências dessa liberdade conquistada. Dificilmente um grande sistema econômico desses vai cair de uma hora para outra, mas as se as mulheres não mais responderem ao poder dele, talvez ele vá ruir em algum momento. Mas para mudar efetivamente a sociedade, é necessário agir como a autora Naomi Wolf diz em seu livro “precisamos de uma nova forma de ver”. Que procuremos ver a verdade por trás dos padrões que nos são impostos e as quais interesses eles respondem de verdade, e entender o motivo de sermos obrigadas a corresponder a ele.
Referências Bibliográficas
WOLF, Naomi. O mito da Beleza: Como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres. Tradução Waldéa Barcellos. 1. ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2018.