Por Maria José de Melo
Eu, com a minha neurodivergência,
Ofendo os quadrados sociais com minha teimosia
De característica única e marcante
Oh! Meu Sertão querido!
Você, com a sua biodiversidade
De característica única e marcante
Ofende os catálogos das plantas sociais com sua teimosia
Eu sou incompreendida
Assim como você, meu sertão querido!
Poema: Eu e o Sertão por Maria José de Melo, publicado no livro “A JITIRANA POÉTICA” pela editora Toma Aí Um Poema, em 2023. OBS: Alguns versos sofreram algumas alterações em relação ao texto publicado.
APRESENTAÇÃO
Nesta coluna na qual escrevo para a Beija-flor Editorial, geralmente trago reflexões acerca da temática do Transtorno do Espectro Autista (TEA). No entanto, em razão dos últimos acontecimentos sociais relacionados às enchentes ocorridas entre abril e maio deste ano de 2024, no estado do Rio Grande do Sul, a temática abordada foi temporariamente redirecionada para uma série de matérias sobre as enchentes no referido estado. Mas, como prometido, estou voltando a abordar novamente o assunto TEA, no entanto, será de outra forma. No mês de outubro de 2024, fechou-se um ciclo pela busca do meu diagnóstico. Agora, mais do que nunca, sei aquilo que verdadeiramente sou. Portanto, continuarei apresentando-lhes os meus textos no formato de série, dividida em cinco partes.
O nome neurodivergente não se trata de um termo ou de uma palavra que nasceu estritamente em bancos de dados de pesquisas científicas ou em debates entre cientistas em congressos acadêmicos ou afins. Essa nomenclatura surgiu em meio à luta social protagonizada por pessoas que sempre buscaram ser reconhecidas independentemente de suas capacidades, haja vista possuírem uma configuração neurológica diferente daquilo que a sociedade considera o “padrão”, ou seja, por ser indivíduos neurodivergentes.
A socióloga australiana Judy Singer, uma estudiosa que se apoiou em trabalhos britânicos e norte-americanos para investigar as características do espectro autista presentes em sua família, ao mergulhar nos assuntos sobre deficiências, percebeu-se com traços de autismo também. Sendo mãe solo de uma pessoa autista, bem como filha de uma mulher autista, Singer utilizou pela primeira vez o termo “neurodiverdade” em seu Trabalho de Conclusão de Curso em sociologia, finalizado em 1998, na Universidade de Tecnologia de Sidney. Nesse mesmo ano, o jornalista norte-americano Harvey Blume usou o termo em um artigo publicado na revista The Atlantic (ABREU, 2022).
Nesse sentido, Singer e Blume marcaram a história dos estudos sobre autismo, criando novos conceitos como “pluralidade neurológica” e “neurodiversidade”, além de ajudar a popularizar o conceito de neurodiversidade a partir do entendimento sobre o: “[...] desenvolvimento de pessoas com deficiência (PcD) e sobre uma nova categoria de deficiência que não era incluída nas já existentes – física, intelectual e psiquiátrica. Mas ela não tinha expectativas com a expressão ‘pluralidade neurológica’ e disse para Blume que ‘neurodiverdade’ era mais interessante” (ABREU, 2022, p. 16-17).
No entanto, cabe pontuar que esses estudiosos trouxeram a perspectiva do autismo do ponto de vista das vivências norte-americanas, o que caracteriza uma peculiaridade analisada. Ou seja, temos esses estudos como marco na discussão sobre neurodivergências (ainda que naquele contexto não tenham trazido esse termo especificamente) e, principalmente, sobre autismo. Em contrapartida, no campo brasileiro, apesar dos estudos já realizados no país, considero que ainda é raro identificar aqueles que tragam novos conceitos os quais abranjam as peculiaridades do autismo no contexto brasileiro e/ou latino-americano. Noutras palavras: “[...] é impossível encontrar um pensamento sobre autismo produzido de modo original em países africanos, asiáticos ou até mesmo na América Latina” (ABREU, 2022, p.53-54).
Desse modo, embora Singer e Blume tenham sido os pioneiros nos estudos sobre as questões que envolvem o autismo, especificamente o termo “neurodivergente” foi derivado do movimento da “neurodiversidade” criado, em 2000, pela ativista norte-americana de origem asiática Kassiane Asasumasu, instrutora de ginástica e uma das fundadoras da Foundations for Divergent Minds (FDM), uma organização sem fins lucrativos que atua no desenvolvimento de pessoas neurodivergentes nos Estados Unidos (1). Nesse entendimento, é possível compreender que o novo movimento social do autismo foi protagonizado por pessoas autistas e popularizado como “movimento da neurodiversidade”, além de ter como objetivo alcançar direitos para a pessoa autista.
No Dicionário Online de Português, a palavra neurodivergente tem a seguinte definição: “[Pessoa] cujo desenvolvimento neurológico é atípico, divergente, que se difere do que pode ser considerado padrão para a maioria das pessoas”. Assim, no sentido estrito do termo, “neurodivergente” refere-se a indivíduos cujos cérebros funcionam de maneira diferente do “padrão”, abrangendo aqueles com deficiências psiquiátricas (depressão, ansiedade, esquizofrenia e bipolaridade); pessoas com deficiências de desenvolvimento ou intelectual (autismo, Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade – TDAH –, Síndrome de Down ou outros tipos de deficiência intelectual); e pessoas com deficiências de aprendizagem como a dislexia, entre outras. Além disso, há os superdotados, que também fazem parte por ter um neurodesenvolvimento atípico.
Contudo, não se trata de um termo que se explica por ele mesmo; é resposta de luta política e do movimento da neurodiversidade pela busca por novos termos que incluíssem as pessoas com deficiências, as quais sempre foram tratadas de forma preconceituosa e capacitista. Como não se trata de um termo médico discutido no meio acadêmico, algumas pessoas tendem a não o aceitar. Essa denominação, portanto, é sociológica e tem base nos novos debates e avanços das ciências sociais, tais como os estudos da neurociência e da ciência como todo. Os conceitos neurodiversidade e neurodivergente estão diretamente ligados à prática das pessoas, surgidos “entre autistas e para autistas”. No entanto, faz sentido também para os grupos que englobam a neurodivergência de modo geral, pois passou a significar identidade e aceitação da nossa essência como indivíduo, além de uma busca justa por suporte e tratamento.
Portanto, o significado contemporâneo de ser uma pessoa neurodivergente vai muito além do simples reconhecimento da existência de diferenças neurológicas entre os indivíduos. Implica a luta por direitos e reconhecimento de indivíduos que se viram excluídos na história humana. Precisamos com urgência promover um ambiente social, cultural e educacional que acolha essas variações sem precisar rotulá-las e tratá-las de forma preconceituosa. Isso inclui adaptar práticas de ensino, ambientes de trabalho e políticas públicas acessíveis e democráticas. Assim, é preciso discutir questões estruturais da nossa economia e a divisão social do trabalho. Mas também entender à qual classe social pertence o indivíduo, isso porque a condição de classe pode gerar maior desigualdade do ponto de vista de enfrentamento às dificuldades com as quais uma pessoa neurodivergente lidará no decorrer da vida.
Nas próximas colunas, irei descrever e relatar como foi a minha busca para encontrar as causas do meu sofrimento. Essa busca, felizmente, fechou um capítulo com a elaboração do laudo médico – o diagnóstico clínico –, o que representa, junto à minha escrita, uma verdadeira libertação emocional. Sinto alívio, como se houvesse sido tirada dos meus ombros uma culpa que carreguei por muito tempo na minha história. Enfim, fiquei mais leve. Sinto orgulho de ter feito o melhor que podia, mesmo com tantas dificuldades e limitações.
Não foi fácil procurar ajuda profissional devido ao preconceito, ao tabu e à negligência tão presentes nessa sociedade capitalista, especialmente quando o assunto está relacionado aos cuidados com a saúde mental. Encontramos muitas barreiras para encontrar bons profissional, os quais, muitas vezes, não estão preparados para nos acolher e entender o que verdadeiramente sentimos. Infelizmente, ser diferente significa não ser aceito pela sociedade, a qual estabelece um padrão para as pessoas.
Dito isso, nos textos que virão nas próximas colunas, buscarei detalhar o meu processo de diagnóstico, de enfrentamento das dificuldades e as questões relacionadas ao meu tratamento. Assim, acompanhe esta coluna para entender melhor esse debate.
NOTAS
(1) Para mais informações, conferir a página da fundação: Foundations for Divergent Minds, disponível em: https://www.divergentminds.org/. Acesso em: 06 nov. 2024.
ABREU, Tiago. O que é neurodiversidade? Goiânia: Cânone Editorial, 2022.