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NEURODIVERGENTES NO SÉCULO XXI: UMA NECESSIDADE HISTÓRICA DOS INDIVÍDUOS “INVISÍVEIS” SEREM RECONHECIDOS

Foto do escritor: Beija-Flor EditorialBeija-Flor Editorial



Por Maria José de Melo


Sim, o diagnóstico é um direito de toda pessoa, não somente na fase infantil, mas também na fase adulta, pois permite o tratamento adequado e o apoio necessário.

 

 

PARTE I – O DIAGNÓSTICO É UM DIREITO

 

Conforme o que foi apresentado no texto anterior desta coluna, no qual eu trouxe uma explicação e o contexto do surgimento da nomenclatura neurodivergente, neste primeiro texto continuarei apresentando-lhes os meus textos no formato de série. Para tanto, abordarei a importância do diagnóstico para uma pessoa que está em estado de sofrimento, visto que a partir dele é possível direcionar o acesso ao direito ao tratamento, além de possibilitar que a pessoa viva de forma melhor, ou seja, qualidade de vida a ela.

Nesse sentido, o diagnóstico é um processo analítico e clínico que permite aos profissionais de saúde (médicos ou outros profissionais em conjunto) identificar uma doença, um transtorno, comorbidades ou condição que estejam causando os sintomas de adoecimento ou de sofrimento ao paciente. Cabe pontuar que, no presente texto, o diagnóstico do qual estou tratando refere-se às questões de saúde mental (psiquiatra, neurológica ou neurobiológica). Desse modo, ele é importante, porque traz detalhes de características, sintomas, além de explicações claras sobre a condição que a pessoa (paciente) apresenta e qual o melhor tratamento. O diagnóstico é o básico do básico.  Sendo, portanto, um direito que toda pessoa tem. Muitos falam que a descoberta do diagnóstico, mesmo sendo tardia (na fase adulta), é uma verdadeira libertação emocional. Há, na verdade, alívio, como se houvesse sido tirado dos ombros uma culpa carregada por muito tempo na história de quem o busca. Particularmente, posso afirmar: ficamos mais leves. Portanto, sinta orgulho de você por ter feito o melhor que podia, mesmo com tantas dificuldades e limitações.

Em princípio, quero deixar aqui claro uma questão: chegar ao diagnóstico sobre a existência do fenômeno “transtorno”, seja ele qual for, pode ser um caminho longo e difícil. A dificuldade dependerá de várias condições, sejam elas financeiras, geográficas, de conhecimento e até mesmo de reconhecimento da necessidade da investigação.

Acredito que as dificuldades encontradas por pessoas das classes populares são maiores, principalmente por quem mora em regiões geográficas dispersas (tais como no interior da Amazônia ou no Semiárido brasileiro), onde os deslocamentos e a distância criam barreiras para as pessoas chegarem ao posto de saúde, à clínica médica ou ao hospital, em razão da distância das suas localidades a esses locais. Outra alternativa é procurar o serviço privado. No entanto, pela falta de recursos financeiros, não conseguem acompanhamento e tratamento adequado, pois os preços das consultas tendem a ser mais altos do que seu orçamento mensal. Aliado a isso, há aquelas pessoas que detêm de pouca (ou mesmo nenhuma) escolaridade e/ou conhecimento sobre os seus direitos. Isso implica, muitas vezes, a falta de um autorrelato que seja fiel às descrições dos seus sentimentos, pensamentos e comportamentos na hora das consultas com os médicos, psicólogos e neuropsicólogos, ou seja, ficam sem saber o que falar e como falar. Assim, a ausência no acesso ao conhecimento é mais uma barreira a ser enfrentada e pode implicar coisas básicas nesse processo, tais como a comunicação.

Inquestionavelmente, quando uma pessoa não conhece, de fato, aquilo que acredita que conhece, a primeira coisa que ela precisa fazer é negar para confirmar a sua ignorância. E isso não necessariamente é feito de forma consciente. No entanto, as pessoas podem ter dificuldade em entender a necessidade e a importância do diagnóstico para a pessoa que está em sofrimento constante em consequência de sintomas provocados por características de um determinado transtorno. Exige-se certo cuidado quando levantamos uma hipótese sobre o quadro clínico de uma pessoa. Tudo exige tempo, pesquisa, bases médicas e científicas. É de costume, na maioria das vezes, que não queiramos nos responsabilizar por algo que demanda mais trabalho do que o habitual. Nesse sentido, as pessoas que atualmente se perguntam se o diagnóstico de autismo ou qualquer outro transtorno é confiável, são as mesmas que não acompanham as descobertas científicas sobre os transtornos recentes ou a própria legislação brasileira.

Se de um lado há um aumento no número de casos de adoecimento e de sofrimento das pessoas de modo geral, de outro, a saúde mental é desacreditada e essas pessoas, desvalidadas. Não é fácil procurar ajuda profissional, porque esbarrar com preconceito e tabu é algo que certamente ocorrerá, além dos bloqueios da própria aceitação do indivíduo ou de algo externo – a sociedade. Ademais, passando pelas etapas de ir buscar ajuda, ainda é provável que haja dificuldades para encontrar bons profissionais, isto é, qualificados e preparados para elaborar um diagnóstico sobre a causa do adoecimento de quem procura o acompanhamento e a ajuda médica e/ou psicológica.

A maior parte dos brasileiros depende do Sistema Único de Saúde (SUS) e isso, infelizmente, também se configura como uma barreira, não pelo sistema em si, pois, obviamente, para muitas pessoas esse é o único meio de tratamento possível. Ocorre que, em razão dos processos de sucateamento dos serviços públicos, não há estrutura suficiente para atender a demanda, há burocratização no acesso, além de superlotação e de precarização do atendimento. A concentração dos especialistas nas capitais e cidades médias configura-se como mais uma barreira nesse processo. Os médicos e os demais profissionais de saúde sem especialização para esse tipo de tratamento, muitas vezes, acabam atendendo inicialmente os pacientes com algum transtorno. Embora não possam assumir esse tipo de responsabilidade, do ponto de vista do direcionamento adequado para o tratamento, esses profissionais também não podem deixar as pessoas sem acompanhamento.

Nesse sentido, de acordo com a portaria nº 336 do Mistério da Saúde (2002), em seu artigo 1º, é obrigatório: Estabelecer que os Centros de Atenção Psicossocial poderão constituir-se nas seguintes modalidades de serviços: CAPS I, CAPS II e CAPS III, definidos por ordem crescente de porte/complexidade e abrangência populacional [...]; § 1º As três modalidades de serviços cumprem a mesma função no atendimento público em saúde mental, distinguindo-se pelas características descritas no Artigo 3o desta Portaria, e deverão estar capacitadas para realizar prioritariamente o atendimento de pacientes com transtornos mentais severos e persistentes em sua área territorial, em regime de tratamento intensivo, semi-intensivo e não intensivo, conforme definido adiante. § 2º Os CAPS deverão constituir-se em serviço ambulatorial de atenção diária que funcione segundo a lógica do território (1).

Ou seja, com base nessa legislação, todo munícipio, seja ele de pequeno ou de grande porte, tem a obrigação de manter um ou mais estabelecimentos desse tipo de atendimento, tais como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), funcionando diariamente (a depender da população do município) de forma gratuita e oferecendo serviços de saúde abertos para a comunidade. Esses centros são instituições que visam ampliar o atendimento psicossocial da população; eles foram criados em substituição aos hospitais psiquiátricos – antigos hospícios ou manicômios – e de seus respectivos métodos para cuidar de afecções psiquiátricas.

Outra legislação importante a se analisar nessa discussão é a Lei nº 13.438, sancionada em 2017, a qual obriga o Sistema Único de Saúde (SUS) a adotar protocolos padronizados para a avaliação de riscos ao desenvolvimento psíquico de crianças até 18 meses. De acordo com essa lei, no inciso § 5º: “É obrigatória a aplicação a todas as crianças, nos seus primeiros dezoito meses de vida, de protocolo ou outro instrumento construído com a finalidade de facilitar a detecção, em consulta pediátrica de acompanhamento da criança, de risco para o seu desenvolvimento psíquico (2).

Desse modo, estima-se que daqui a uns 10 ou 20 anos, teremos menos adultos sendo diagnosticados com algum transtorno na fase adulta, uma vez que, agora, temos um conjunto de medidas preventivas ou de atenuação de doenças ou transtornos para toda a criança antes dela completar 2 anos, o que nos leva a entender que seja essa uma das razões pela qual houve um aumento considerável dos diagnósticos de crianças com transtornos, como do neurodesenvolvimento – Transtorno do Espectro Autista (TEA); Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH); de aprendizagem – dislexia ou psiquiátrico – esquizofrenia, bipolaridade e etc.

Na fase adulta, ter um diagnóstico é ainda mais complexo, e a barreira econômica se faz mais uma vez presente, visto que, em muitos casos, é muito difícil alcançar esse diagnóstico através do SUS, sendo necessário pagar por alguma coisa na saúde privada. Assim, quando a família do paciente não tem condições financeiras, a possibilidade do diagnóstico fica distante e o tratamento também. Portanto, o processo de diagnóstico para o adulto é muito mais dificultoso, especialmente porque ainda não há uma legislação que estabeleça a obrigatoriedade de identificar a quantidade de indivíduos com transtorno na fase adulta, por exemplo. As pessoas que conseguiram o diagnóstico na fase adulta, seja ele de qual for, conseguiram a grandes penas, não foi fácil, e elas não são privilegiadas por conta disso. Algumas por ter condições financeiras melhores conseguiram acessar o diagnóstico. Mas quantas delas têm acesso ao tratamento de fato? Nega-se o laudo final, pois não querem que mais pessoas acessem as políticas públicas. O relatório médico, com o diagnóstico final, contém as sintomatologias do quadro clínico e explica questões ligadas às dificuldades, aos prejuízos e aos riscos que a pessoa pode ter se não houver o atendimento preferencial, seja de suporte ou de acolhimento.

Desse modo, afirmar que o diagnóstico é um privilégio para aqueles que já conseguiram o laudo final, não ajuda em nada na conscientização e no debate que é preciso ser feito. O diagnóstico é um direito de toda pessoa! Ele é caro? Sim. Ele é difícil e será finalizado em longo prazo? Sim. Ele é inacessível na maioria das vezes? Sim. Mas não podemos acreditar que seja algo impossível. Para a fase infantil, como vimos, atualmente há uma lei que cobre a responsabilidade do Estado quanto ao acompanhamento, desde o nascimento do bebe até perto dele completar dois anos. Porém, quanto aos que estão na fase adulta, ainda há carência de legislação direcionada ao atendimento especializado mais amplo para a proteção dos adultos que buscam algum tipo de diagnóstico. É até comum sentirmos um vazio ou mesmo a falta de suporte e apoio. Não sabemos o que fazer ou como vamos fazer. Parece-me que sempre fica pendente alguma coisa para irmos buscar. Dito isso, no texto que trarei na próxima coluna, buscarei detalhar como surgiu a hipótese de autismo para o meu diagnóstico, bem como as questões relacionadas, o processo de enfrentamento e as dificuldades com as quais lidei no caminho. Portanto, acompanhe esta coluna para entender melhor esse debate.

 

NOTAS

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