
Por Maria José de Melo
Por favor, não tente me mudar.
Eu sei que tenho defeitos,
Não sou perfeito
Mas, quem o é?
Olha para mim quando quiser minha atenção,
Eu vou tentar te entender.
O que você fala pode ser grego ou latim,
Pode ser até outra língua,
Eu não entendo.
Quando tudo fica embaçado e confuso
E parece até que saio de dentro de mim,
Sinto medo
E vou procurar aquilo que me acalma e me dá segurança.
[...]
Poema: Amor autista, escrito, em 2017, por Fatima de Kwant (1).
PARTE II – HIPÓTESE DE AUTISMO
Conforme o que foi apresentado anteriormente nesta coluna, quando eu trouxe uma explicação da importância do diagnóstico, as dificuldades, as legislações e o contexto na fase infantil e adulta, neste texto, continuarei apresentando-lhes os meus textos no formato de série, e, agora, abordarei a hipótese de autismo como possível avaliação diagnóstica para mim.
No ano de 2020, durante a pandemia da Covid-19, entrei em um quadro depressivo devido ao esgotamento relacionado ao ambiente universitário e à militância, mas também, e principalmente, pelas dificuldades na área amorosa. Com o passar dos meses, o aumento dos acontecimentos conflitantes excedeu as minhas capacidades de gerenciamento, o que me fez entrar numa crise generalizada e escrever uma Carta-Manifesto de 18 páginas, em outubro de 2021, após longos 20 anos de silêncio, dor, angústia, medo e vulnerabilidade. O assunto tinha como narrativa o trauma deixado pela violência sexual e o quanto isso causava prejuízos significativos em várias áreas da minha vida. Em novembro de 2021, por não conseguir gerenciar e lidar com essa situação, procurei ajuda profissional em um projeto social (Revelando-Ser) que, na época, acolhia adultos vítimas de violência sexual na infância, na cidade de Recife (PE). De imediato, fui bem acolhida (por uma assistente social e por duas psicólogas). A orientação era iniciar o processo terapêutico o quanto antes, mas por dificuldades de lidar com o tema em casa, eu não queria fazer a terapia de forma on-line. Então, preferi procurar outro projeto social, a Associação Areais Saúde e Cidadania (AASC), também localizada na cidade de Recife (PE), para ter acesso aos profissionais de forma presencial. O processo de triagem aconteceu no mês de dezembro do mesmo ano, e em abril de 2022, a psicoterapia começou a acontecer de forma presencial e semanalmente.
Nesse sentido, a minha busca por um diagnóstico começou a partir do momento em que falei para mim mesma que não era “normal” sentir aquele medo e aquela angústia com tanta intensidade. Assim como não era saudável o comportamento que eu tinha por carregar um segredo maldito guardado a sete chaves: a violência sexual. Inclusive, carregar um segredo me deixava vulnerável e provocava, de forma inconsciente, uma fragilidade maior para sofrer novos tipos de violência sexual. O meu interesse por um diagnóstico chamou atenção de algumas pessoas, pois elas também se dedicavam ao máximo que podiam para se envolver e me ajudar de alguma forma. Isso aconteceu com uma companheira de militância, em outubro de 2022, devido às nossas conversas profundas sobre o meu processo de trauma, a terapia e as dificuldades em geral com a vida. Ela percebeu, pela primeira vez, características do autismo em mim. Foi uma verdadeira revolução emocional para mim. Começou a passar um filme na minha cabeça. Houve, de imediato, uma identificação com as características e fazia muito sentido tudo que ela me falou. Assim, comecei o processo de investigações do Transtorno do Espectro Autista (TEA), conhecido popularmente como autismo.
Levei o assunto do TEA para a terapia. A psicóloga que me acompanhava desde abril de 2022 supervisionava um estagiário na época, o qual também, consequentemente, estava me acompanhando. Os dois falaram que as minhas características não demonstravam sinais de ser uma pessoa autista, apesar de apresentar uma personalidade e identidade muito diferentes. Porém, eles não acreditavam ser importante formular nenhuma hipótese do que poderia ser, ali mesmo na terapia. Tanto os psicólogos quanto algumas pessoas próximas a mim me acolheram e aconselharam procurar um especialista em TEA. Mas não é tão fácil assim como comprar uma garrafinha de água na rua quando estamos com sede. Na verdade, não é fácil achar um profissional especializado e que tenha agenda para o atendimento imediato. Não basta apenas falar assim para uma pessoa que está em sofrimento e precisa ser acolhido antes de tudo. Embora os psicólogos tenham discutido o assunto comigo, não o aprofundaram, pois acreditaram que eu não sofria de um transtorno.
Além disso, muitas pessoas que me acolheram, apesar de pouco saberem sobre o transtorno, passaram a me ajudar como podiam. Acreditei que naquela época era cedo demais, haja vista que não tinha maturidade sobre o assunto para procurar um especialista. Antes de procurar por um especialista, precisei passar por um processo de aceitação de estar em um dos grupos da neurodivergência, bem como quis ter segurança sobre o assunto.
Portanto, lembre-se: o mais importante é você acolher o que a pessoa em sofrimento está levantando como hipótese. O sofrimento é da pessoa, não é seu. Contudo, podemos nos sensibilizar também pela causa do outro. Quando assumimos uma causa (em coletivo), unidos somos mais fortes e lutamos para chegar ao objetivo, mesmo que isso demore para ser alcançado. Foi assim que aprendi estando na militância política!
A partir de janeiro de 2023, comecei a ser acompanhada por outro profissional. Eu não sei explicar, mas esse psicólogo olhou e acolheu a minha dor de uma forma diferente. Em março desse mesmo ano, ele levantou uma hipótese de autismo com base no meu relato sobre as dificuldades que eu apresentava no meu dia-a-dia e pelo meu histórico de vida. Ele falou com tanto cuidado, olhando para os meus olhos profundamente e com muita empatia que nem percebi se era uma afirmação, um sinal ou algo importante para a minha vida.
Aquela informação talvez fosse a mais importante dita em uma sessão de terapia naquele ano de 2023. Não lembro direito qual foi a minha reação, pois sempre me dá um branco nessas horas de intensidade em razão da rigidez emocional que desenvolvi. Quando estou frente a uma nova informação, o meu cérebro trava. Depois, já em casa, o choro veio e de forma descontrolada. Passei a viver um certo luto e rejeitar algumas pessoas que me criticavam por ser diferente. As minhas memórias pareciam querer ganhar asas e voar; elas estavam lá, vivas como nunca. Aquelas memórias mal compreendidas chegaram sem avisar, até então oprimidas e esmagadas juntas à sensação de rejeição, de indiferença e ao preconceito, mas, contraditoriamente, seguidas de sentimentos de libertação emocional, contentamento e indignação. Numa intensidade como a de um trailer de um filme, porque somente agora eu soube: sou uma pessoa neurodivergente!
Nesse sentido, as minhas chances de me entender, de buscar novas formas de tratamento e de melhorar o quadro clínico que eu apresentava na época (no ano de 2023, tive três crises, no começo no meio e no final do ano) aumentaram. Aliás, o autismo chegou como uma grande descoberta, revolucionou profundamente o meu jeito de olhar para as pessoas neurodivergentes, mas, principalmente, mudou a forma como passei a olhar para a minha história. Isso significou saltos para o meu autoconhecimento e para a aceitação da neurodivergência.
Em junho de 2023, depois de uma crise que eu havia sofrido com a troca de psicólogo na AASC, durante uma sessão de terapia, dei entrada na fila do Sistema Único de Saúde (SUS) no meu município, em Jaboatão dos Guararapes (PE), através da Unidade de Saúde da Família do meu bairro. As consultas foram realizadas com o médico clínico, o qual me pediu para eu fazer vários exames clínicos (os quais, por sinal, não deram nada alterado).
Esse profissional encaminhou o meu caso para um psiquiatra geral, no próprio município. E disse que o processo de avaliação diagnóstica estava meio caminho andado, pois eu já estava sendo acompanhada por profissionais e fazia terapia há um bom tempo, portanto, já me encontrava em tratamento, necessitando apenas fechar o laudo médico. No entanto, até a escrita deste texto, não fui chamada para a primeira consulta pelo SUS... A média de espera aqui, no município de Jaboatão dos Guararapes é de dois, três ou quatro anos para poder ter a primeira consulta com um psiquiatra geral, psicólogo ou neurologista. Apesar da população do município de Jaboatão dos Guararapes ser de 643.759 habitantes, de acordo com o Censo de 2022, ainda carece de profissionais suficientes para atender a demanda populacional. Diante dessa situação, o que me restou foi procurar por um profissional no serviço particular. Foi nesse período que, para poder ir mais segura às consultas, além, claro, de me ajudar a entender mais o que de fato eu tinha, comecei a escrever sobre o TEA, e o meu 5º livro foi nascendo. Isso foi importante, pois me deu certa tranquilidade.
Em dezembro de 2023, conversei sobre o meu processo de avaliação diagnóstica do TEA com outra companheira de militância, a qual me conhece há muito tempo. Ela me falou da possível condição de Dupla-Excepcionalidade (TEA+AH-SD), bem como sobre a possibilidade de que eu tivesse apenas a condição neurobiológica Altas-Habilidades/Superdotação (AH-SD). Ela me incentivou a procurar um especialista em TEA mais uma vez. Eu não quis aceitar de imediato essa nova sugestão, pois a minha teimosia e a rigidez emocional alta, não me permitem ser facilmente convencer de algo, tampouco acreditar e/ou aceitar uma nova informação (ter um transtorno e ser superdotada, por exemplo), pois, na minha mente, isso pode significar algo muito importante para mim. Foi exatamente como me senti naquele momento com aquela nova sugestão da companheira de militância que tenho muita confiança. Preciso pontuar que o psicólogo que levantou a hipótese de autismo, em março de 2023, falou que eu tinha uma inteligência acima da média. Além dele, Iná, minha amiga que me ajudou no meu processo de autoconhecimento, e duas companheiras de militância (as quais, aliás, são pedagogas e professoras) falaram sobre diversas características muito presentes no meu comportamento, as quais também coincidiam com as características das AH/SD. No entanto, só estou tendo mais conhecimento sobre esta condição atípica do neurodesenvolvimento agora.
Como eu sempre disse às pessoas, ser autista era uma hipótese. Se ela era verdadeira ou não, somente caberia ao especialista em TEA confirmá-la ou descartá-la. Não seria papel de qualquer um elaborar um autodiagnóstico sem conhecimentos clínicos e precisos sobre o transtorno. Contudo, agradeço profundamente aqueles que se esforçaram e contribuíram com o meu processo de avaliação diagnóstica. Muito obrigada! Sem vocês, eu não teria insistido!
Sobre as AH/SD, eu não entendia o que isso poderia significar para mim. Tratava-se, na verdade, de um transtorno, característica ou condição do neurodesenvovimento. Isso poderia modificar o processo de avaliação e de diagnóstico, até então, que tinha como hipótese de confirmação mais próxima o autismo. No entanto, eu não quis investigar ou buscar respostas para a questão. Estava preocupada com a questão financeira, uma vez que precisava estabilizar a minha renda, algo ausente desde 2019, então, eu considerava que esta área precisava muito mais da minha atenção naquele momento do que o diagnóstico. Assim, dediquei-me às vendas dos livros e à propaganda em geral do meu trabalho, deixando um pouco de lado essa questão de diagnóstico. No momento em que me sentisse preparada para receber o diagnóstico, iria buscar por conta própria. As pessoas concordarem ou não com o meu processo de diagnóstico, me desgastava muito e tirava todas as minhas energias. Quando consegui ter uma renda, procurei o neurologista paguei as consultas e elas foram marcadas no mês de junho de 2024, o neurologista não teve muita dificuldade de identificar qual era a minha condição neurobiológica. Pois, eu apresentei um autorrelato, claro sobre o meu histórico de sofrimento e de prejuízos.
No ano de 2024, fui percebendo algumas diferenças no meu comportamento, na minha cognição, nas emoções e na percepção devido à melhora significativa em áreas que haviam prejuízos, principalmente, no trabalho. Com a descoberta do autismo, alguns traços e algumas características foram clareados, tais como hiperfoco, rigidez cognitiva-emocional, perfeccionismo, desregulação emocional, literaridade ou ausência de filtro social, hipersensibilidade sensorial, camuflagem, interações sociais atípicas, forte senso crítico e de verdade-de justiça, entre outros. Apesar disso, algumas questões me geravam dúvidas (eu apresentava uma forte resiliência, memória excepcional, autodidatismo, alta capacidade intelectual, curiosidade intensa, intuição muito desenvolvida, facilidade para se expressar emocionalmente e extremamente comunicativa, portanto, não havia deficiência na comunicação). Na questão do hiperfoco, consigo direcioná-lo para aquilo que necessito; não é um gosto ou um interesse restrito, ele mudou, por exemplo, da área científica para a literatura. Mas eu precisava de uma investigação mais rigorosa e profunda sobre os critérios que poderiam fechar o diagnóstico. E isso só poderia ser identificado por um especialista em TEA.
Então, na terapia, a psicóloga pontuou que, depois da elaboração final do diagnóstico, eu poderia receber alta da terapia, o que ocorreria no final do ano de 2024. Isso me animou, no entanto, também percebi que a terapia era um ambiente muito importante, pois em nenhum outro ambiente havia aquela abertura para falar sobre os meus sentimentos e emoções de forma aberta. Então, falei que poderia, sim, receber alta, embora eu acreditasse que o laudo médico do neurologista talvez tivesse algo diferente. Eu estava sentindo que ele iria apresentar algo diferente e viriam à tona questões que não havíamos discutido ainda na terapia, (por isso, não recebi alta da terapia, mas a psicóloga já começou a me preparar para isso acontecer um dia). Cheguei a essas conclusões conversando com as pessoas no Recife Antigo. Eu sabia que isso iria acontecer. A minha intuição nunca falhou.
Portanto, o neurologista especialista descartou o TEA. Eu não sou autista! Tenho a condição AH/SD, uma condição atípica do neurodesevolvimento, mas não se trata de um transtorno ou doença, e ela não tem um diagnóstico clínico, nem um CID. É muito difícil alguém com essa condição não ter um histórico de grande sofrimento com relação à aprendizagem, à socialização e à comunicação com os pares, bem como é difícil alguém não ter adquirido nenhum transtorno durante a vida. No meu caso, o meu diagnóstico é diferenciado, pois há componentes psíquicos disfuncionais a partir de evento pregresso (violência sexual), com repercussões psicoemotivas sólidas que podem ter afetado o curso de desenvolvimento de comportamentos e performance social a partir de demandas adaptativas.
No texto que trarei na próxima coluna, buscarei detalhar os impactos causados pela violência sexual, que provocou um estresse tão elevado – deixando marcas psicológicas e mudanças fisiológicas profundas – afetando o meu desenvolvimento de forma geral e específica. Falarei como esses impactos se manifestaram mais de 20 anos. Bem como as questões relacionadas ao diagnóstico, o processo de enfrentamento e as dificuldades com as quais lidei no caminho. Portanto, acompanhe esta coluna para entender melhor esse debate.
NOTAS
(1) Fatima de Kwant é jornalista, escritora de textos sobre o TEA, especialista em Autismo, Comunicação e Autismo & Desenvolvimento. Terapeuta do próprio filho, Edinho, hoje, com 19 anos e no lado mais leve do Transtorno do Espectro do Autismo (TEA), Fátima faz um trabalho voluntário internacional através do seu Projeto Autimates. Para mais informações, acesse a página do projeto disponível em: https://www.autimates.com/amor-autista/. Acesso em: 15 nov. 2024.