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A reflexão de Cícero sobre o valor da amizade.


Por Chiara Santi


Cícero foi um filósofo, orador e político da Roma Antiga, um importante representante do estoicismo eclético. A obra de Cícero Sobre a amizade, traz uma análise a respeito da origem e da finalidade das relações de amizade para os seres humanos. Cícero recria, ao seu próprio modo, os ensinamentos acerca da amizade que ouviu de outros homens sábios de seu tempo. A escrita acontece através da criação do cenário de um diálogo entre pessoas que refletiam sobre o valor da amizade, logo após a morte de um amigo querido, um personagem chamado de Cipião.

Na cena dramática, Fânio encontra Lélio e o louva por sua fama de homem sábio, seja entre os mais humildes até os eruditos. Principalmente por Lélio cultivar a virtude e colocar a sua riqueza nos valores de sua alma. Cévola intervém no diálogo e percebe que Lélio enfrenta a perda de seu amigo, que era um homem sábio e bom, com moderação. Lélio toma a palavra e diz que jamais perderia o rumo ou esqueceria de seus deveres cívicos mesmo que estivesse passando por alguma dificuldade pessoal, como a perda de seu amigo.  Lélio continua o discurso e diz que se alguém teria motivos para sofrer e estar mal, seria ele e não Cipião, que faleceu. Cipião foi um homem querido pelos seus súditos na política e teve em vida todo o prestígio e reconhecimento do bom exemplo que ele deixou.

Lélio então nega e discorda de teses que estavam começando a vigorar no debate intelectual, sobre a alma morrer com o corpo. Ele discorda dessa visão e defende os ensinamentos dos antigos, que prescreviam importantes ritos funerários, justamente por saberem que a alma não é aniquilada com a morte. Citando o exemplo de ensinamentos de homens sábios como Sócrates na Atenas Clássica, Lélio observa “que as almas humanas são divinas e que, quando deixam o corpo, o retorno ao céu está aberto para elas e a viagem é mais leve para os homens melhores e mais justos ()”. Por isso seu amigo Cipião não tem nada a temer com sua morte. O único que tem a sofrer é o próprio Lélio, ele diz, com a ausência de uma pessoa tão estimável como foi a de seu amigo em vida.

Lélio diz que não é tão sábio como o fazem parecer que ele é, mas diz que vai compartilhar o que ele pensa sobre o cultivo de boas amizades. De princípio, ele diz, que a amizade só pode evoluir no meio das pessoas boas. Ainda diz que para se ter o exemplo de uma vida de fato boa, ela deve ser colocada em prática nos atos mais comuns do cotidiano e não em saberes inalcançáveis aos homens comuns, como no caso daqueles que possuem a fama de sábios. Para isso, os homens bons devem seguir a natureza, a realidade das coisas como elas são e isso implica perceber que o ser humano foi feito para viver em comunidade. Cultivando bons laços de amizade com aqueles que convivem ao seu redor. Lélio então diz, algo muito bonito a esse respeito:

 

“Pois a amizade nada mais é do que o acordo em todas as coisas divinas e humanas com boa vontade e cuidado. Com exceção da sabedoria, estou inclinado a acreditar que os deuses imortais não deram nada melhor à humanidade do que a amizade.”

 

O cultivo de uma boa relação de amizade é um presente da divindade para os seres humanos. Alguns cultivam bens passageiros como a riqueza, o prazer, o poder, a saúde, a honra, mas o bem mais valioso a ser cultivado é a virtude, que faz aumentar e prosperar as chances de cultivo de boas amizades e dos bens mais valiosos para uma boa vida.  Lélio refere-se a amizade perfeita e verdadeira, daquele tipo muito raro, a amizade que incentiva o seu crescimento pessoal e que torna o fardo difícil mais leve. Sobre o resultado do cultivo de uma boa amizade verdadeira, Lélio diz:

 

“E como a amizade tem muitas das maiores conveniências, ela se destaca claramente além de tudo o mais, porque acende uma boa esperança para a posteridade e não permite que as almas se enfraqueçam ou caiam. Pois de fato, quando alguém contempla um amigo, é como se ele contemplasse uma cópia de si mesmo. Por esta razão, mesmo quando eles se separam, estão juntos, mesmo quando são pobres, prosperam, mesmo quando são fracos, são fortes e (o mais difícil de dizer), mesmo quando morreram, vivem – tão grande é a estima, a memória e o anseio de seus amigos por eles. Por causa disso, sua morte parece abençoada, sua vida digna de louvor.”

 

Logo, uma boa amizade alcança o nível da imortalidade porque permanece mesmo após a morte, na lembrança viva dos amigos que foram cativados pelo exemplo sincero daquela vida boa e amiga que se foi. Porque quando estavam vivos, os amigos souberam cultivar o tempo que tiveram juntos deixando um exemplo de reciprocidade de bons sentimentos, como força e coragem para continuar em frente. Lélio diz também que o cultivo de boas amizades é fundamental para que as comunidades não pereçam e nem caiam em discórdia. Um conselho para as comunidades se manterem unidas, é o incentivo de bons laços de amizade entre os seus habitantes, como uma virtude a ser cultivada e praticada por todos.

Lélio diz que falta esclarecer qual seria a principal motivação para se manterem o laço de amizade por tanto tempo. Se a amizade seria de alguma forma movida por uma troca de interesses e favores mútuos ou se ela seria um bem a ser cultivado por si mesmo. Nada pode ser forjado em uma relação de amizade verdadeira e os favores a serem ofertados são dados com benevolência e desprendimento. A amizade não pode crescer em terreno de mesquinharia e de necessidades, mas no plano da abundância que se tem para compartilhar aquilo que há de melhor, multiplicando riquezas já existentes.

Uma boa amizade não é cultivada na carência, mas quando você já está completo em suas virtudes e qualidades, a ponto de reconhecer em outra pessoa uma troca sincera, de igual para igual, sem outros interesses além do amor mais puro da philia. Dessa forma, uma amizade sincera deve ser cultivada para além da utilidade e da necessidade, mas unida pelo sentimento mais puro de benevolência, pois se algum dia a sorte da vida de alguém mudar, como no caso de uma pessoa perder todas as suas riquezas materiais, ela ainda teria a riqueza maior que foi cultivada: os bons amigos sinceros que soube conquistar em vida através de sua virtude. Lélio continua sua reflexão sobre a amizade e se questiona a respeito de até onde se deve ir para o bem de seus amigos. Ele coloca a situação de uma rebelião contra a República e se mesmo assim, os amigos deveriam se apoiar mutuamente ou um dos amigos deveria alertar para o perigo e o mal para a política que eles estariam fazendo se fossem adiante com o plano de revolução. Aqui, fugindo da cena dramática recriada por Cícero, vemos a aparição e defesa de um dos valores conservadores do estadista e político Cícero. Fazendo a defesa de que uma amizade só é boa se ela permanece unida pela virtude, e defender a República seria o mesmo que defender a estabilidade e a garantia da virtude para a convivência de todos.

Portanto, um bom amigo não concorda com tudo o que outro faz se isso é algo danoso para ele mesmo e o bem comum. A amizade, como já foi dito anteriormente, só pode permanecer no âmbito da virtude se os bons amigos nos aconselham tendo em vista o princípio da sabedoria que nos encaminha para o bem. Lélio também alerta para o perigo de se deixar levar pelos discursos daqueles que promovem uma vida individualista como sendo a melhor, defendendo que o melhor para o ser humano é ter bons amigos perto de si para que eles possam se ajudar mutuamente, através de conselhos que incentivem o crescimento pessoal de cada um. É um argumento contra a autossuficiência, mostrando que o ser humano aumenta o seu potencial se ele puder contar com bons amigos que incentivem seu processo de expansão. O contrário seria viver uma vida tirânica e infeliz, na qual você tem muitas riquezas materiais, mas carece de quem te apoie e oriente nos momentos de dificuldades. O valor de um bom amigo é imperecível e ele só cresce ampliando cada vez mais as riquezas da vida que valem a pena cultivar.

Estabelecendo os limites da amizade delimita-se também o limite para a afeição. Lélio cita a forma como a sua cultura entende os limites da afeição e diz, em linhas gerais, que eles estão condicionados a como nós mesmos nos estimamos. Mas para ele não adianta dizer que devemos ajudar um amigo da mesma forma como nós nos ajudamos, porque nem sempre entregamos tudo o de melhor para nós, mas lembramos de priorizar nossos amigos além. Essa visão encarcera a relação de amizade no modelo de uma troca de deveres e obrigações. Lélio, citando a própria reflexão de seu amigo Cipião, diz que a amizade verdadeira não pode prosperar em uma relação na qual as coisas são estabelecidas através do medo de perder o poder e a desconfiança disso. Cícero aproveita esse momento para descrever um dos importantes conselhos para se cultivar uma boa amizade: tomar cuidado antes de estabelecer uma amizade e chamar alguém de amigo cedo demais, antes, é preciso conhecer o caráter dessa pessoa.

Logo, para conquistar uma boa amizade, os propósitos de vida entre os amigos devem ser semelhantes. Porque é através da virtude que o afeto permanece na relação. E para fazer uma boa escolha de amigos, deve-se observar algumas qualidades importantes: firmeza, estabilidade e constância. Mas a amizade só pode ser avaliada nestes moldes após se estabelecer uma relação prévia, para que essa avaliação seja feita. O próprio tempo e as circunstâncias se encarregaram de mostrar a verdadeira face dos amigos. A característica mais marcante e indicadora de uma pessoa que é uma boa amiga, é a lealdade. Na escolha dos amigos e testes avaliativos de caráter, devemos procurar aquelas pessoas que buscam a simplicidade, que se esforçam para manter uma relação social e são de natureza simpática. O resultado disso é o que Lélio já havia pontuado como o principal, que a amizade só é possível entre homens bons. O homem bom é o equivalente de um homem sábio. Um sábio jamais fingirá seu caráter, é muito melhor ser transparente consigo. Deve haver uma abertura simpática para a conversação e a relação crescerá sempre no princípio do companheirismo.

A respeito de investir em novos amigos e cultivas antigas amizades, é que as relações de amizade não possuem tempo de validade, elas amadurecem es e fortalecem com o tempo. Assim como a chegada de novos amigos é bem-vinda para trazer a novidade e as mudanças possíveis. Sendo importante, sempre que possível, manter-se no nível de seus amigos, mesmo que haja alguma diferença de cargo ou prestígio. Citando o exemplo de Cipião, ele gostava de incentivar e promover o crescimento daqueles que ele tinha na mais alta estima Lélio diz sobre Cipião:

 

“Ele também desejava que todos os seus amigos fossem os melhores para o seu auxílio. Este é um exemplo que todos nós devemos seguir. Se algum de nós tiver alguma vantagem em caráter pessoal, intelecto ou fortuna, devemos estar prontos para fazer de nossos amigos participantes e parceiros nisso.”

 

Ser um bom amigo e ocupar uma posição de poder e superioridade, significa estender e ampliar essa mesma influência para aquelas pessoas que lhe são queridas também, incentivando o crescimento pessoal delas. Dessa forma, fica difícil cometer erros nas amizades, porque o que mais diverge no caráter entre pessoas boas e más, são os objetivos de suas vidas e suas atitudes. De antemão, pode-se fazer um julgamento prévio a esse respeito. E, caso seja inevitável o afastamento e o rompimento de uma amizade, deve-se fazer isso aos poucos, da forma mais natural possível. Tornando-se menos frequente em vez de estabelecer um rompimento brusco logo de cara, se a falta cometida tiver sido branda o suficiente para se agir assim também. Caso tenha sido uma falta grave, deve-se agir de acordo com isso, se afastando totalmente com honra. Lélio diz que é necessário tomar cuidado para não gerar uma inimizade a partir dessa finalização. Ele diz:

 

“Nosso primeiro objetivo, então, deveria ser evitar uma ruptura da amizade; nosso segundo, assegurar que, se ela ocorrer, nossa amizade pareça ter tido uma morte natural e não uma morte violenta. Em seguida, devemos cuidar para que a amizade não se converta em hostilidade ativa, da qual decorrem disputas pessoais, linguagem abusiva e repreensões raivosas.”

 

Para evitar que isso aconteça de qualquer jeito, é importante colocar em prática o conselho que foi dado anteriormente: de não estabelecer um laço de amizade com alguém sem antes conhecer o seu caráter, não confiar e entregar o seu afeto cedo demais. A amizade verdadeira é um instinto natural do ser humano e só se dedica a ela quem entendeu a necessidade dos valores da virtude, que se comprazem em saber compartilhar a vida com outra pessoa ampliando o crescimento mútuo dos envolvidos na relação. Lélio estabelece a ânsia de formar laços de amizade como algo natural e intrínseco ao ser humano. Para construir boas relação de amizade, primeiro você precisa ser de fato um homem bom e virtuoso, ser primeiro um bom amigo para depois aprender a compartilhar, entregar e oferecer aquilo que você já possui.

Se foi necessário repreender um amigo por alguma atitude errada cometida, o conselho é fazer isso de modo complacente, sendo sincero sem hostilidade. E evitar o máximo possível estabelecer relação com bajuladores e pessoas interesseiras, que dizem o que você quer ouvir, em vez de dizer o que você precisa ouvir para o seu crescimento. Um bom amigo entenderá a finalidade da correção e será grato pela orientação recebida. A falsidade, típica dos bajuladores, não se sustenta nos testes que acontecem ao longo de uma amizade verdadeira, como dar bons conselhos para os amigos em situações de dificuldades. Quem permite espaço para a falsidade dos bajuladores ama mais a si mesmo do que a sinceridade de um bom amigo que quer nos orientar para o bem. Logo, como Lélio já até cansou de dizer, é somente na virtude que uma boa relação de amizade pode florescer de verdade. Lélio diz que um grande exemplo de uma boa amizade nesses termos, ele teve com Cipião e por essa razão ele viverá para sempre em sua memória.

 

 

Referências Bibliográficas

 

CÍCERO. Sobre a amizade. Tradução e notas de Alexandre Pires Vieira. Curitiba: Montecristo editora, 2021.

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