top of page

As riquezas da vida interior em Santa Teresa D’ávila




Por Chiara Santi


Conhece-te a ti mesmo e conhecerás deuses e o universo.

- Oráculo de Delfos

 

 

Na sua obra mais famosa, com o nome de Castelo Interior ou Moradas, Santa Teresa D’ávila é convidada a discorrer sobre um assunto que sirva de guia de orientação para a vida de oração das suas irmãs carmelitas. De início, Santa Teresa fornece uma imagem como metáfora para ilustrar os caminhos que nos levam a Deus. A autora idealiza um castelo com múltiplas moradas, em que reside no cômodo central, a centelha do próprio criador dentro do espírito humano.

A Primeira Morada, portanto, é o caminho de reconhecimento de que o ser humano não se resume a apenas uma vivência corporal, de que ele também é feito de algo invisível/incorpóreo que o vivifica para a existência, sendo composto de corpo e alma. Para destravar o conhecimento e a entrada nas Primeiras Moradas, é preciso fortalecer a vida de oração e meditação. Sair do automático, tomar consciência dessa parte do corpo que nos anima, aprender a fazer o silêncio necessário para que a voz de Deus fale através de ti. Com uma riqueza filosófica tamanha, Santa Teresa D’ávila exorta as suas irmãs carmelitas para que busquem primeiro conhecer a si mesmas, para destravarem a conquista da Primeira Morada, dessa maneira, ela proclama a importância do cuidado com a vida espiritual a partir do autoconhecimento e do silêncio meditativo da oração.

Entendemos, nesses passos iniciais, que a alma é um castelo com múltiplos aposentos. Ao passar pelo reconhecimento da alma e da constância da vida de oração, caminhamos com Santa Teresa para mais fundo deste castelo, adentrando nos cômodos mais profundos e íntimos, entendendo o percurso necessário de cada morada. Na Segunda Morada, Santa Teresa diz que será muito importante a perseverança de continuar esse caminho, de não se deixar estagnar nas portas principais da alma, mas de procurar cada vez mais o mergulho para dentro de si.

E Santa Teresa também avisa que esse caminho não será nada fácil, que quanto mais uma alma busca se elevar, mais dificuldades ela encontrará por essa jornada, como ela diz “Sim, a alma aqui tem muito trabalho, especialmente se o demônio entender que ela tem a condição e os costumes necessários para ir muito além. E então, o inferno inteiro se juntará para fazê-la sair” (D’ávila, 2022, p.37, tradução Sandra Martha Dolinsky). Para isso, a autora diz que é preciso estar vigilante e que se esteja na companhia de almas que também compartilham esse mesmo percurso. Lembrando de se ter a cruz de Cristo como amparo e ideal.

Reiterando o percurso da Segunda Morada, Santa Teresa continua na Terceira Morada dizendo que a vida na terra será constantemente um caminho de provações e dificuldades, que a bem-aventurança e a paz só se encontram na presença do criador, que enquanto a alma estiver vivendo esta experiência terrena, ela será testada. A alma na Terceira Morada já está amadurecida e sabe qual caminho deve seguir e toma as devidas precauções para não se deixar cair em tentação. As dificuldades aumentam, Santa Teresa cita “há quem muito foi dado, muito será cobrado”, mas relembra das abundantes graças que são reservadas para aqueles que suportam e esperam no Senhor Deus. Os testes e as dificuldades aparecem, segundo interpretação de Santa Teresa, servem como chave de autoconhecimento e fortalecimento do próprio interior, para que se aprenda a permanecer firme nos ideais desejados.

Na Quarta Morada, Santa Teresa passa a falar de assuntos mais espirituais e sobrenaturais, de verdades que transcendem a razão. Ela faz uma distinção entre a satisfação das coisas que veem de Deus e as que provém do mundo, defendendo que os prazeres espirituais são mais nobres e que eles acalmam o coração, enquanto os prazeres mundanos trazem desassossego para a alma. Para conseguir estar sempre nessa presença prazerosa de Deus, Santa Teresa reitera da importância de prezar pelos momentos de meditação e oração. Mas não apenas isso, como ela diz “de nada serve pensar muito, mas sim amar muito (D’ávila, 2022, p.65, tradução Sandra Martha Dolinsky)”. Porém, ela também chama atenção para necessidade de acalmar a mente e evitar a divagação mental, demonstrando que o conhecimento racional também é fundamental para a aproximação com a presença de Deus.

Nesta morada, a alma precisa aprender a expandir os limites da própria compreensão para alcançar o que significa plenamente estar próximo de Deus e de realizar a vontade d’Ele. O caminho do entendimento de si mesmo é um caminho de elevação para verdades mais elevadas sobre o divino. Santa Teresa continua utilizando comparações imagéticas, ela chega a dizer que a voz de Deus dentro de cada pessoa age como se fosse uma água corrente canalizada, indo em uma só direção. Sobretudo quando se aprende o estado de espírito necessário para alcançar essa presença de Deus. Como ela sintetiza bem:

 

Na outra fonte, a água chega diretamente da nascente, que é Deus, e assim como quer Sua Majestade quando decide nos dar uma graça sobrenatural, produz imensa paz, quietude e suavidade dentro de nós. Não sei em que direção nem como – e aquela satisfação e aquele deleite não se sentem no coração como os daqui. Depois de cheia, a pia vaza e espalha essa água por todas as moradas e potências até chegar ao corpo. Por isso eu disse que começa de Deus e acaba em nós; e que, como bem sabe quem já experimentou, todo homem exterior goza desse prazer e dessa suavidade. (D’ávila, 2022, p.72,Tradução Sandra Martha Dolinsky)

 

Quanto mais a alma mergulha em si mesma e se compreende, mais ela alcança  compreensão da presença divina dentro de si e entende o que precisa ser feito para alcançá-la. Santa Teresa chama de “oração de recolhimento”, o momento em que, por graça divina e por intercessão do Espírito Santo, repousa-se na presença de Deus no sentimento da mais pura paz e contemplação. As dificuldades e tentações não acabam para alma que alcançou esse estado, mas ela se encontra mais fortalecida para resistir aos revesses pois se encontra entregue em plena confiança na presença do cuidado de Deus. Porém, Santa Teresa comenta de que é importante permanecer em vigília e de evitar as situações que possam vir a ofender essa presença de Deus em nós.

Na Quinta Morada, Santa Teresa versa um pouco mais sobre a compreensão desse estado espiritual e que ele se apresenta como uma certeza muita clara e evidente, dentro da alma que experimentou a presença dessa graça espiritual de sentir-se mais próxima da centelha divina de Deus. E também pede a compreensão dos limites que rondam o intelecto humano, de que há momentos de verdades sobrenaturais e de que é difícil procurar entendê-las somente com a razão. Nessa morada, ela fornece a imagem do trabalho realizado por uma mariposa até conseguir despertar como uma. O período de casulo e o tempo necessário para conseguir voar. Quando se transforma em mariposa, a alma se encontra vivificada por essa presença de Deus e só precisa continuar trabalhando no próprio espírito para alcançar cada vez mais essas verdades mais elevadas.

Santa Teresa também aponta como um caminho para se chegar até Deus através dos exercícios das próprias virtudes, por meio da realização de boas obras de caridade e, com isso, a entrega sincera de amor ao próximo. Sobre isso, ela diz:

 

Quantas coisas dessas, ou de outras, faziam os filósofos, com todo o saber que tinham? Aqui, o Senhor nos pede apenas duas coisas: amar Sua Majestade e o próximo. É  nisso que temos que trabalhar, e obedecendo com perfeição, fazemos Sua vontade e estamos unidos a Ele. Mas que longe estamos de fazer essas duas coisas a tão grande Deus como deveríamos! E eu já disse isso! Rogo à Sua Majestade que nos dê graça para que mereçamos chegar a esse estado, pois está em nossas mãos, se quisermos.  (D’ávila, 2022, p.109,Tradução Sandra Martha Dolinsky)

 

Para finalizar a Quinta Morada, Santa Teresa compara essa união com Deus através dos momentos de oração a experiência de um casamento místico com a presença do criador. Que como tal, atende as exigências de trocas de compromissos com o divino, cercada de direitos e deveres. E pede para que se continue tendo muito cautela, citando a presença de Judas, o traidor, no círculo pessoal de Jesus, Santa Teresa diz que mesmo nos estágios mais elevados o demônio aparece para desvirtuar. E pede para que suas irmãs carmelitas honrem o compromisso espiritual com Deus, permanecendo no caminho da virtude.

Na Sexta Morada, Santa Teresa fala dos efeitos diretos das graças extrafísicas concedidas a quem se entrega na dedicação da vida espiritual. Para evitar a descrença do julgamento exterior, a autora fornece um método investigativo para saber diferenciar o que seria confusão mental, desígnios do maligno dos efeitos propriamente ditos da graça de Deus. Santa Teresa diz que, diferente de uma ideia imaginada, a experiência com Deus fornece uma certeza muito clara para a alma, sem haver dúvidas de sua presença e mensagem. E diferente de algo orquestrado pelo maligno, a experiência divina fornece calma e tranquilidade interior, diferente de agitação, inquietação e qualquer sensação que fuja da sensação de uma tremenda paz.

Por fim, nas Sétimas e últimas Moradas, Santa Teresa fala do aspecto do matrimônio espiritual com Deus. Nesta altura, fala das almas que vivem longe dos pecados mortais e veniais, trata das almas que buscam estar diariamente na presença de Deus, iluminando-se com a presença d’Ele. Nesta Morada, a alma encontra uma convergência direta com a presença divina, tornando-se uma só em Deus. A mariposa da Quinta Morada morre na Sétima Morada, porque já encontrou  Cristo Jesus dentro de si, confundindo-se com ele. A grande redescoberta de Santa Teresa na literatura mística mundial, -sobretudo em seu tempo e mais ainda no período contemporâneo-, com certeza se encontra no fato dela revelar para o mundo o caminho de reencontro com Deus, o retorno para dentro do seu próprio interior.

 

Mas o que acontece na união do matrimônio espiritual é muito diferente: o Senhor surge no centro da alma sem visão imaginária, mas sim intelectual, e de maneira mais delicada que as citadas, como apareceu para os apóstolos, sem entrar pela porta, quando lhes disse: Pax vobis. É um segredo tão grande e uma graça tão elevada que Deus comunica ali à alma em um instante […] só posso afirmar que a alma – digo, o espírito da alma – fica una com Deus.  (D’ávila, 2022, p.214-215,Tradução Sandra Martha Dolinsky)

 

Apontando quais as condições necessárias para se alcançar essa potencialidade contida em cada ser humano, que é buscar estar mais próximo da presença de Deus e a evitar tudo o que possa ofender a divindade. Explicando também, as razões de Deus para querer derramar essas graças para a humanidade, Santa Teresa diz que elas não foram feitas para gerarem frutos somente de contemplação, mas para fortalecerem o espírito humano,  com a intenção de que boas obras sejam produzidas em seu nome. Para que a presença de Deus se faça presente através de cada consciência desperta para o potencial infinito do amor contido dentro de si. Através de cada pessoa que aceita, individualmente, a fazer o trabalho interior necessário para a conquista de todas as Moradas do Castelo.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Considerações Finais

 

Muitos devem estar se perguntando o que uma freira católica tem a ver com a filosofia, a partir de Santa Teresa D’ávila eu percebo que podemos fazer vários paralelos. Na Primeira Morada, Santa Teresa evoca a importância do autoconhecimento e da reflexão para a melhor compreensão da jornada da fé, incentivando suas irmãs carmelitas a estarem despertas para si mesmas e para a realidade das coisas que a rodeiam. Na Segunda Morada, percebe-se um evocativo quase estoico para o domínio de si diante das adversidades. Santa Teresa incita suas irmãs a permanecerem firmes na fé e a lutarem contra as tentações que possam vir a aparecer pelo caminho, em um exercício diário de autoexame crítico e consciente. Na Terceira Morada, Santa Teresa lembra do caminho da virtude, que para a moral e ética cristã, tem o seu fim último na vida de Jesus Cristo. Isso não deixa de ser um thelos específico tal como foi pontuado por Aristóteles, que postulou a Eudaimonia, a felicidade, como a finalidade de todas as ações humanas. Diferente disso, Santa Teresa, de acordo com a prática da sua religião, aponta Jesus Cristo como o caminho a seguir para o modelo e sentido  da vida para as irmãs carmelitas. O que não deixa de ser um incentivo de aperfeiçoamento humano universal, visto ser de extrema importância cultivarmos bons valores para o direcionamento da nossa vida. E esses temas são recorrentes no âmbito da discussão filosófica. Para Santa Teresa, é a prática do amor universal de Deus em nossas ações diárias e a busca por se melhorar a partir desse ideal.  De modo geral, Santa Teresa fala para o público religioso mas acaba englobando boa parte de todas as pessoas que desejam realizar esse caminho de busca por verdades mais elevadas, podemos mudar o Nome, o sentido, o conceito ou a tradução, mas quando estamos falando da conquista de valores absolutos talvez estejamos falamos da mesma coisa sem nos darmos conta disso. Deus ou o Bem supremo, Alma ou Intelecto, sinônimos, quando aceitamos percorrer o caminho de aprimoramento interior trilhando o caminho, não só por meio da intelecção, mas através da prática transformadora da verdadeira sabedoria.

 

 

Referências Bibliográficas

 

 D' ÁVILA, Santa Teresa . Castelo Interior: ou Moradas. Tradução Sandra Martha Dolinsky. Porto Alegre: Citadel, 2022.

23 visualizações

Commentaires


bottom of page