
CARTA ABERTA (Texto – 2)
Por Maria José de Melo
No dia 30 de março de 2023, depois de uma sessão de terapia, escrevi no meu diário pessoal uma Carta Aberta, falando sobre minhas dificuldades relacionadas às características do Transtorno do Espectro Autista (TEA). Até o final do ano de 2022, não sabia que elas poderiam fazer parte de alguns dos sintomas do TEA. Não publiquei a carta ou falei dela para alguém quando a escrevi. Deixei somente como um desabafo no meu diário por mais de um ano.
Uma observação importante: não leve algumas afirmações aqui escritas para o lado pessoal, isso não vai te fazer bem! A fim de conhecimento: neste texto contém ironias! Não seja como a presente escritora que leva tudo na literalidade.
Antes de qualquer coisa, quero alertar você, leitor (a), de uma questão: todas as características do Transtorno do Espectro Autista (TEA) são humanas, qualquer ser humano pode possuir alguma(s) dela(s). A diferença está em quem tem o transtorno, pois elas se manifestam numa proporção maior nos autistas, por exemplo, em comparação às demais pessoas que não estão no espectro. Conforme o 1º artigo da Lei nº 12.764, de 27 de dezembro de 2012: “a pessoa com transtorno do espectro autista é considerada pessoa com deficiência, para todos os efeitos legais”. Ou seja, um indivíduo com autismo é uma pessoa com deficiência.
Desde pequena, sempre senti que havia algo diferente em mim, algumas áreas da minha vida sempre foram prejudicadas e isto não é comum. A forma como meu cérebro se desenvolve é diferente, em comparação com a maioria da população que não sofre de nenhum transtorno. Olho o mundo de um jeito diferente. As pessoas olham para mim de forma diferente, e eu, na maioria das vezes, não me sinto bem com os olhares das pessoas em minha direção. Pois sentia (e ainda sinto) uma energia venenosa, carregada de inconformação, hipocrisia, inveja, maldade, falsidade e escuridão. Não sei o que fazer com tudo isso. Um elogio também poderia (e pode) me causar desconforto. Quando as intenções não são claras e muitas coisas ficam “soltas no ar”, esse tipo de comunicação é muito confusa para mim, pois sou clara, sincera e literal, devido a minha deficiência na comunicação e na interação social.
Eu não gosto de chamar atenção, na verdade, de nenhuma forma, mas, sem intensão, o meu jeito de ser acaba chamando a atenção. Ser verdadeira, autêntica e clara em uma sociedade, cuja, relações sociais, econômicas, políticas e culturais exigem a mentira e a manipulação como forma de sobrevivência, é muito desgastante, desconfortável e difícil para mim... Aqueles que não se adequam a essa realidade social, são considerados ingênuos. Assim, ficamos nas “margens”. Eu sinto essa exclusão desde criança...
O diagnóstico pode explicar muita coisa, por isso é tão importante para a pessoa autista, apesar de ser o básico do básico. Por isso, é um direito de toda pessoa autista! Muitos falam que a chegada do diagnóstico, mesmo sendo tardio, é uma verdadeira libertação. Sentimos orgulho de ter feito o melhor sempre, mesmo com tantas dificuldades e limitações. É um alívio e nos tira a culpa sobre os nossos ombros. Enfim, ficamos mais leves.
Sofri muito na infância e na adolescência, pois quase ninguém me entendia. Na vida adulta, o sofrimento aumentou devido às cobranças: SOU ADULTA. Nossa! É horrível crescer, porque sofremos o dobro. Eu não sou boa em lidar com muitas demandas ao mesmo tempo. Na maioria das vezes nas quais não passei em nenhuma entrevista de emprego ou não me adequava ao sistema de trabalho do sistema capitalista, achei que era uma pessoa de outro mundo chamado “mundo de Maria ou ‘Marilândia’”. O que restou foi apenas estudar, assim, poderia encontrar alguma coisa que me tirasse do vazio e do mar da indiferença que sempre sentia estar. Eu sabia que deveria existir algo que poderia me libertar da imensidão de incompreensão na qual sempre senti com os estímulos externos. Ou seja, faltava eu descobrir uma palavra com sete letras, chamada “A-U-T-I-S-M-O”. Eu sofro de um transtorno!
Desde quando cheguei aqui na Região Metropolitana de Recife (RMR), na cidade grande, mais precisamente, no município de Jaboatão dos Guararapes (PE), em 2009, os médicos diziam que eu tinha alguma coisa fora do comum, mas não sabiam diagnosticar.
Entrei na universidade pública na primeira tentativa e no curso que sempre desejei fazer: G-E-O-G-R-A-F-I-A. Até achei que tinha descoberto tudo... Ah! Grande ilusão da minha parte. A universidade foi um dos ambientes que possibilitou o meu desenvolvimento, e lá também conheci pessoas parecidas comigo (nossa, acho que o meu “grupinho” e os “melhores amigos” tinham algo fora do lugar (risos), assim, como eu!). Mas o nosso drama é que ainda não sabíamos que a semelhança e a conexão eram por conta dos nossos transtornos…
Ah! Nesse ambiente universitário, a situação complicou ainda mais quanto ao campo de relacionamento amoroso. Eu não entendia os sinais do flerte, mas isso não impediu o prelúdio de um primeiro amor. Assim, no contexto amoroso em que eu vivia, a única coisa que pensava era: por que ele faz isso comigo e sai correndo na maioria das vezes? Nossa! Que confusão; ele era tarde e eu, manhã. Eu não sei ao certo o que era mais dominante: as dificuldades com as características do TEA ou do Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT). Além da dificuldade para entender contextos sociais, regras e segundas intenções, havia uma ansiedade específica — a fobia ao contato ou à relação íntima com alguém do sexo masculino. Esse quadro clínico severo, foi deixado pela violência sexual, provocando em mim uma verdadeira pororoca. Eu apenas sentia tudo ao mesmo tempo, e não entendia nada. O bloqueio emocional e sexual advindo do prolongamento de um segundo transtorno provocado pela violência sexual, era esmagador demais… Nossa! Que sofrimento prologado… Mas, enfim, agora sei a causa, né?
A ciência, a pesquisa e a escrita são um refúgio. A minha solução para tudo… Quase tudo, né, não serei absoluta aqui. Mas o ambiente em que me desenvolvi como pesquisadora e sujeito social, também deixou marcas negativas em mim. Chegou um momento em que eu não aguentava mais o ambiente universitário, por tanta cobrança, hipocrisia, egocentrismo, atraso intelectual e censura. Depois da finalização do mestrado, em 2019, não voltei até o momento, ano de 2024.
O movimento social, especificamente, o movimento estudantil, me deu os estímulos necessários para o meu desenvolvimento na comunicação e na interação social, mas cobrou além do que eu poderia dar, gerando muitas crises em mim. Eu me sentia esmagada, principalmente, quando fui morar na cidade de Maceió (AL), no ano de 2016 — fiquei por lá até o ano de 2019. Tudo isso somado à situação de violência da qual fui vítima em 2002, do crime sexual, ainda na infância. A frustração amorosa iniciada em 2013, sem resolução, gerada devido ao meu limite para o relacionamento amoroso, juntou-se a outro contexto de violência sexual, vivenciado por mim em 2018, com uma pessoa do próprio movimento... E para completar, ainda teve a censura ao meu texto da dissertação e toda a situação de violência psicológica sofrida no de 2019, ainda na universidade.
Eu não sei como eu suportei tudo isso... Tudo isso provocou uma verdadeira bomba atômica e ela foi implodindo dentro de mim. No ano de 2021, não teve jeito, a barragem se rompeu, tive um pico do meu quadro depressivo se manifestando em uma crise generalizada, e veio a escrita da Carta-Manifesto. E eu, sinceramente, não sabia na época como isso tudo um dia iria terminar. Hoje, tenho algumas certezas e, porque não, incertezas.
As condições concretas e materiais contemporâneas de nosso tempo, nos dão possibilidades suficientes para explicar fenômenos, sejam eles sociais, psicológicos, mentais, históricos ou físicos. Acreditando no meu potencial de ser uma cientista-militante, desafiei o muro do silêncio, da opressão feminina envolvendo a violência sexual, em um contexto de pedofilia. Fui vítima aos 12 anos! Abalei as estruturas sociais! Acho que a Terra deve ter dito: “Maria foi atropelada pelo tempo em uma estrada lá em São Caitano. E agora, como ela vai se levantar? Ah! Ela vai saber quando chegar a hora certa dela”.
Em outubro de 2021, chegou a coragem para fazer a mudança drástica da minha vida. Eu deixei a área acadêmica e entrei na literatura. Em poucos meses de escrita, escrevi uma Carta-Manifesto de 18 páginas. Nela, continha manifesto, repúdio, amargura, dor, vulnerabilidade e medo. Reflexo de um trauma profundo provocado pela violência sexual e pelos dilemas mal resolvidos e atrasados da nossa sociedade contemporânea. A literatura libertou a minha alma! Após escrever a carta e mandar para o interlocutor, chorei por sete dias seguidos, para depois sair por aí, contando a história… E chegar por aqui.
Uma certeza eu tenho nessa vida: o amor pela causa social é um motor revolucionário. Nenhum trauma, seja qual for, poderia impedir a expansão desse amor e ideal por uma sociedade mais justa. O amor é um agente de bem-estar, e não o contrário.
Minha frase preferida: “Digo aquilo que faço e faço aquilo que eu digo!”