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Foto do escritorBeija-Flor Editorial

Antagonizante




Por Luciane Monteiro


Mavie cobriu a cabeça quando o despertador tocou. Não!, gemeu, irritada. Vou dormir só mais um pouquinho. Acordou num sobressalto duas horas depois, atrasada para seus compromissos com a vida. Abriu o computador, impaciente com a sua antagonista.

— Me boicotando de novo! Não vai conseguir dessa vez — resmungou, sozinha, digitando freneticamente para colocar os projetos em dia.

O celular soou notificando uma mensagem. Esticou os olhos, mas não conseguiu ver a tela porque o aparelho estava sobre o balcão. Tentou ignorá-lo, porém ecoou de novo. Mirou os teclados à sua frente, perdeu-se.

— Onde eu estava mesmo?

Outra notificação. E se fosse algo urgente? Levantou-se, alcançando o aparelho. Era o esposo. Primeira mensagem: você viu meu cartão do estacionamento? Segunda: já procurei por tudo aqui no carro e não encontro. Terceira: Estou atrasadíssimo!

Começou a digitar no aparelho para responder, então veio a quarta mensagem: Achei.

Estando com o telefone na mão, checou os outros contatos. Quantas mensagens dos grupos silenciados! Deu uma conferida rápida. Automaticamente, derrubou o dedo em uma das redes sociais. Leu postagens, olhou stories, enviou alguns, riu de outros. Passou por outras redes só para dar uma olhadinha.

Assustou-se com o alarme e olhou para a tela do computador de novo.

— Infeliz! Me boicotou outra vez, mas não posso me preocupar com seu ódio agora. Tenho que cuidar do almoço.

Correu de um armário a outro, da geladeira ao balcão. Tudo separado, inquietou-se com a sujeirinha deixada no fogão, pois não conseguia cozinhar se não estivesse tudo limpo. Aproveitou e deu uma ajeitada nos armários. Atrasou o almoço. Serviu os filhos, recolheu a louça. Um café depois do almoço iria bem, decidiu, permitindo-se uma pausa para uma xícara. Porém, como, para ela, café combinava com bolo de fubá, decidiu preparar um  para o lanche da tarde.

Bolo no forno, planejou voltar aos projetos, mas, ao passar pela sala de jantar, aproveitou para deixar a mesa pronta, porquanto seu bolo de fubá pedia uma mesa bem posta. Achou melhor trocar a toalha, pois havia uma manchinha de molho, provavelmente do almoço. Foi até o armário do quarto buscar outra, contudo, ao passar pelo escritório, lembrou-se do e-mail não respondido e sentou-se em frente ao computador. Como já havia novas mensagens na caixa de entrada, começou a conferir, distraindo-se com uma divulgando as promoções de fim de ano da sua loja preferida.

Dessa vez, só foi despertada pelo cheiro de fumaça.

Bolo perdido.

Quase colocou fogo na casa.

Culpou a antagonista que sempre torcia contra ela. A limpeza foi demorada, perdeu a vontade de refazer o bolo. Preparou um café simples e foi buscar pão pronto. Tiago não gostava, as crianças não comiam, mas, ao menos, teria a sensação de haver feito algo para agradar.

Como a tarde passou tão rápido e não se deu conta? Perdeu o horário do pilates. Poderia ainda fazer a aula de spinning, mas acabou se distraindo com mais uma xícara de café, bateu a preguiça. Bem, ainda posso treinar, pensou.

Com a academia cheia? Revezando os aparelhos? A antagonista estava certa, seria estressante naquele horário. Ficou para outro dia.

Preparou a janta, colocou as crianças para dormir. Tiago recebeu um chamado do hospital: sua paciente entrou em trabalho de parto e ele precisou retornar ao trabalho.

Finalmente sozinha! Quais tarefas deveria concluir mesmo? Enrugou a testa, pensativa. Eram tantas! Contudo, ficar sozinha significava poder cantar alto, dançar e dormir tarde. Vou dar só uma olhadinha na minha série favorita, decidiu, cortando uns pedaços de queijo. Porém, como o queijo sempre ia bem com vinho, serviu-se de uma taça, que, por sua vez, abriu caminho para uma segunda. Sentiu-se leve. Olhou para o computador e os projetos chamando por ela. A  terceira taça a levou a rir sozinha.

— Infeliz! Me boicotou de novo — disse a si mesma, sua antagonista, ciente de ter perdido mais um dia.

Texto de Luciane Monteiro

 

Esse texto é um tanto angustiante, não é? Porém, quem nunca teve um dia de Mavie? Ou muitos! Aqueles dias improdutivos quando apostamos uma corrida contra o tempo, mas ele dispara turvando nossa vista apenas com a fumaça de areia deixada de sua fuga. Ele se esvai e nos prostramos, culpados e angustiados. Sim, procrastinar pode gerar sentimentos de inquietação e até mesmo depressão, pois temos consciência de estarmos postergando obrigações ou atitudes necessárias. Em muitos casos, deixamos para depois, ou para o último minuto, tarefas enfastiantes que, no fundo, não queremos fazer.

No entanto, agindo assim, podemos acabar, também, postergando ações cruciais para mudanças significativas: uma nova formação para abandonar a carreira ou o trabalho com o qual não estamos satisfeitos, o fim de um relacionamento ou de uma amizade tóxica, o aprendizado de uma nova língua, quem sabe o início de uma vida mais saudável com exercícios e dieta balanceada. Afinal, quem nunca disse: Amanhã vou dormir mais cedo. Essa semana vou começar a me exercitar. Esse ano vou aprender uma língua. E assim vai…

A culpa vem justamente porque a procrastinação não é sinônimo de preguiça. O preguiçoso não carrega culpas, já o procrastinador as carrega por ter consciência da necessidade de cumprir uma tarefa, ou tomar uma atitude. Enfim, de agir! Porém, ele não percebe que a raiz do problema pode ser mais profunda. Eu usei um conto para iniciar o artigo de hoje porque, assim como a personagem, em muitas situações somos nós mesmos que nos boicotamos. Isso pode ocorrer por diversas razões, como, por exemplo, o medo de errar.

“Existem determinadas crenças ou razões que estão por trás dos maus hábitos? Existe um medo, um trauma, algo que está te limitando, trazendo o apego por algo ruim para você? Esse reconhecimento vai ser crucial para finalmente superá-los.”

(Ame você)

A autossabotagem também pode ter origem em crenças limitantes ou inseguranças mal trabalhadas. Não existe, entretanto, fórmula mágica ou simples para deixar de procrastinar. O melhor caminho é o autoconhecimento: descobrir a razão de nos permitirmos agir como nossos próprios antagonistas. É preciso enfrentar nossos medos, propondo-nos mudanças tangíveis sem exigir uma metamorfose milagrosa e, principalmente, sem nos compararmos a ninguém.

Cada pessoa tem seu tempo, seu modo de agir e sua forma de se organizar. Uns são mais centrados e eficazes, outros se perdem em meio a inúmeras tarefas, brigando com a mente em constante parlapatório.

“Em vez de insultar o predador da psique, ou em vez de fugir dele, nós o desarmamos. Conseguimos esse feito não nos permitindo pensamentos discordantes a respeito da vida da nossa alma e especialmente do nosso valor.”

(Mulheres que correm com os lobos)

No artigo anterior, usei o termo predador para me referir a quem nos persuade a acreditar que somos menos. No presente artigo, contudo, quero usar o termo para me referir ao predador dentro da nossa mente, o nosso pensamento negativo em relação a nós mesmos. Segundo Estés, nós derrotamos o predador, ou antagonista como usei no conto, discordando de suas acusações: “Predador: ‘Você nunca termina nada que começa’. Você: ‘Termino muitas coisas, sim.’ (pg.87)”.

É isso mesmo, pode parecer simplório demais, porém é como se começa: discordando do seu pensamento acusador. Sem dúvida você já terminou muitas coisas, puxe essas memórias, certamente já fez coisas positivas. Conte para si mesmo seus feitos. Exalte-se! E, se você insiste em afirmar nunca ter feito nada de produtivo, então simplesmente não duvide de que não é tarde para marcar um ponto.

Para fechar, releia o conto. A personagem não foi cruel demais consigo mesma? Que tal acolher seu antagonista anterior e descobrir seus anseios e demandas? Seja menos rude com você, acreditando numa mudança progressiva, mas lembrando que ela não surge aleatoriamente. É preciso haver pequenos movimentos diários até se tornarem uma ação efetiva. Quer uma dica? Comece com uma agenda, um caderno simples, um bloco de notas. Organize-se e, se for necessário, coloque horário. Limite o tempo nas redes sociais. Escolha um livro e leia, comece com uma página por dia. Respire!

E, por hoje é só. Nada de fórmulas irreais. Vamos começar pela agenda ou lista de tarefas? Porém, precisa ser no papel mesmo, sobre a mesa, na porta da geladeira, em post-it. Pouco importa. O importante é não esquecer de escrever a primeira tarefa para colocar em prática assim que você terminar esse texto:

“Derrotar o predador da psique.”

Livros citados:

Ame Você (Lucas Villela), edição de 2022.

Mulheres que correm com os lobos (Clarissa Pinkola Estés), edição de 1994.

 

Luciane Monteiro é paranaense, natural de Paranaguá. Graduada em Letras por amor à literatura, enredou-se na carreira docente, e sua avidez por compreender a mente humana a levou a iniciar uma jornada de estudos em Psicanálise. Escritora por paixão, gosta de mergulhar no universo masculino, feminino ou infantil, com o intuito de desvendar os nós de cada um, inventando novas possibilidades para cada realidade com que se depara! Participou de diversas antologias e é autora de livros de literatura infantil, infantojuvenil, contos e romances, entre eles “Taça Escarlate”, “A última Tempestade”,  “O Veneno Negro” e “Cordilheira e Outros Descaminhos”. Atualmente, mora no Canadá, onde faz parte do grupo Voix de Pasaj, cujo objetivo é difundir a pluralidade intercultural no Québec.

 

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