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O erro fatal

Foto do escritor: Beija-Flor EditorialBeija-Flor Editorial

Atualizado: 25 de jul. de 2024




Por Luciane Monteiro


“Quis correr, mas tinha cimentado os pés. Quis gritar, mas há muito tempo já havia calado seu grito, desde o dia em que quis falar, mas engoliu suas verdades achando-as duras demais para serem ditas. Emudeceu.”


O erro era fatal, o erro o perseguia, invadia seu espaço. Em cada silêncio, em cada discurso, em cada passo. Errava. Sentava-se e sonhava com seu fracasso, esquecia do resto, nascera para perder. Não vai dar certo. Não deu. Era assim desde menino, acostumado a perder. Estava diante de uma grande oportunidade agora, alcançaria. Alcançaria? Tinha medo. Mas não, agora não voltaria atrás, tarde demais. Foi até a porta, aquela porta imponente de madeira nobre e maciça, a maçaneta dourada pedindo para ser aberta. O contorno trabalhado com a madeira da árvore sob a qual descansara quando pensara em desistir. Agora a porta se colocava diante dele. Tantas se fecharam, mas naquele momento era só abrir. Um passo, um rastro de medo.


Tantas vezes pensou que alcançaria aquela lua iluminada, cada vez mais distante, cada vez mais cheia; as nuvens passavam por ela e pareciam acariciá-la, reverenciá-la. E ele, tão longe… A lua que deixou de tocar, tão branca, mas quando esteve perto, muito perto, temeu.


Agora as nuvens estavam escuras, turvando seus pensamentos, curvando sua coragem. Olhou para si mesmo, os óculos grandes e pesados, as lentes grossas que não o faziam enxergar mais longe, mas colocavam uma barreira de vidro entre ele e o mundo, entre ele e seus sonhos, entre ele e o alcance da verdade estampada e iluminada em luzes de neon. Venha, dizia o letreiro que ele criou em sua mente de ideias distorcidas e desintegradas.


Olhou as próprias mãos, grossas e escondidas dentro de bolsos que as aprisionavam e não o deixavam abrir a porta. A porta que podia ser a saída de suas aflições e a entrada de seu sucesso. No entanto, podia também não haver nada depois dela senão um abismo sem fim. Por outro lado, se caísse fecharia os olhos e sentiria o vento, a gravidade, a suavidade pesada da queda. Então, abriria os olhos no último momento, olharia os centímetros restantes entre sua cara e o chão e deixar-se-ia esmagar. Porém, talvez não encontrasse forças para reconstruir-se e, desse modo, sairia como um monstro desfigurado e seria repudiado pelas pessoas por seu aspecto repulsivo, pensou aflito e teve medo novamente.


Olhou para os próprios pés e não era difícil olhar os próprios pés, pois estava sempre de cabeça baixa, de modo que os viu presos ao chão, fixos como que cimentados. E o cimento crescia mais e mais e ele não podia se mover. Nesse momento, percebeu que o pedreiro era ele próprio. Suspirou, e ouvindo o próprio suspiro percebeu o quanto era grande o silêncio ao seu redor, pois estava sozinho.


Quis correr, mas tinha cimentado os pés, quis gritar, mas há muito tempo já havia calado seu grito, desde o dia em que quis falar, mas engoliu suas verdades achando-as duras demais para serem ditas. Emudeceu.


Pensou em todos os seus fracassos e viu a porta afastar-se, desenhando-lhe uma tranca para a qual não tinha a chave. Ou tinha. Fechou os olhos e se lembrou daquele dia em que sempre faria todas as coisas que tinha desejo de fazer: amanhã. E deixou para amanhã. 


Seu erro fatal era temer. E temeu.


(Texto de: Luciane Monteiro)


E quem nunca temeu, não é mesmo? Quem nunca deixou para depois? Quem, afinal, nunca se boicotou sem querer? Hoje escolhi um dos meus textos dedicados ao público masculino, o que não exclui as mulheres do artigo. O texto pode ser pesado e um pouco angustiante, mas reflete a mente de alguém com uma autoimagem distorcida, carregando o estigma de perdedor imposto a si próprio.


É preciso refletir sobre a origem dessa falsa, e dolorosa, imagem de si mesmo. Poderia ser uma iminência de ausências sentidas na infância? Ou, quem sabe, na aceitação de estereótipos impostos ao longo da vida? Acontece frequentemente de aceitarmos insultos intencionais ou escondidos por trás de brincadeiras “inocentes”. Algumas falas causam feridas profundas: você não faz nada direito! Que peso tem essa afirmação, não é? E, em muitos casos, você segue acreditando não fazer, de fato, nada certo e, assim, antes mesmo de obter sucesso em uma nova empreitada, você já afirma que vai dar errado porque não acredita em si mesmo. E, por não acreditar em si mesmo, perde pontos, perde chances. Enfim, boicota-se! 


É isso mesmo, você está alimentando o seu auto-sabotador. 

“A porta que podia ser a saída de suas aflições e a entrada de seu sucesso. No entanto, podia também não haver nada depois dela senão um abismo sem fim.”


O texto ilustra, embora metaforicamente, a compulsão por repetir ações que conduzem o personagem à derrota: 

  • Não abrir a porta. Ou seja, deixar a oportunidade passar, não arriscar uma nova empreitada, um novo desafio.

  • Não alcançar aquela lua quando esteve perto. A lua representa um sonho, um objetivo, quem sabe um amor.

  • Deixar para amanhã, mesmo sabendo que o amanhã é incerto, que a oportunidade perdida de hoje pode não estar disponível no dia seguinte. Ou seja, procrastinar. Boicotar-se.

 

Na psicanálise, acredita-se que a repetição de padrões pode estar conectada a algo do passado gravado no inconsciente. Nesse caso, sempre é interessante rever nossa história, tentar puxar fatos que marcaram, deixando as lembranças virem à tona para que sejam ressignificadas. Não tenha medo de buscar verdades, pois o autoconhecimento é o caminho mais certo para uma mudança de perspectivas sobre a vida. 


“Olhou para si mesmo, os óculos grandes e pesados, as lentes grossas que não o faziam enxergar mais longe, mas colocavam uma barreira de vidro entre ele e o mundo, entre ele e seus sonhos (...).”


A repressão de sentimentos leva o sujeito a proteger-se de novas rejeições e de novos fracassos, é um mecanismo de defesa. Por essa razão, a pessoa pode fugir de um relacionamento para não (re)viver sentimentos angustiantes. E, muitas vezes, evita o risco e “deixa para amanhã” uma nova experiência, seja pessoal ou profissional. Contudo, a vida é um risco! A única resposta que já se tem de antemão é o “não”. Evitar o risco de errar, de não ser bem-sucedido ou aprovado é em vão. As oportunidades passam, e com elas passa também a vida, bem como a juventude e o momento presente que deve ser aproveitado. 


Por isso vale a pena iniciar uma jornada de autodescoberta, buscar onde sua essência se perdeu e foi ofuscada pelo medo. Escolhi o texto com o personagem masculino pensando em como a palavra é importante para a cura. Ao mesmo tempo, em quanto é difícil para um homem se abrir e admitir suas fraquezas caso ele tenha sido uma criança que ouviu dizer que “homem não chora” e, por isso, engoliu choro. Talvez esse choro preso na garganta tenha endurecido a ponto de se transformar num caroço impedindo a fala, o desabafo, a busca por ajuda. Talvez o tenha transformado em uma pessoa aparentemente fria que não se abre para a vida, embora careça de um apoio. 


“E o cimento crescia mais e mais e ele não podia se mover. Nesse momento, percebeu que o pedreiro era ele próprio.”


É preciso conhecer seu auto sabotador e entender que todos temos um lado negativo que nos puxa para baixo em vez de empurrar para a frente. O primeiro passo é tomar consciência de não estar lutando contra o mundo ou pessoas que torcem contra, mas de estar lutando com você mesmo. Lutando contra o seu medo de ser bem-sucedido e alcançar o julga não merecer. E, por essa razão, reforço a importância do autoconhecimento, é preciso começar a observar suas atitudes, reconhecer sua responsabilidade nos resultados que você obtém no dia a dia. É preciso, ainda, identificar quais gatilhos o paralisam ou o afastam dos seus propósitos. O segundo passo é assumir que um amor perdido não se recupera e o afeto não concedido na infância também não se remenda na vida adulta. Porém, é possível revisitar com outros olhos, ressignificar e perdoar o passado. 


“Pensou em todos os seus fracassos e viu a porta afastar-se, desenhando-lhe uma tranca para a qual não tinha a chave. Ou tinha.”


O terceiro passo é entender que você tem a chave. Então, que tal parar de se autossabotar e encarar as oportunidades que surgem? Enfrentar a vida e se dar novas chances. É hora de tomar as rédeas, não ter vergonha de buscar ajuda. Planejar! Guardar o “não” no bolso e correr em busca do “sim”. 


Desejo, para a sua história, um final diferente do conto. Portanto, não tenha medo de admitir ter as chaves e ser merecedor do sucesso. Ou seja, seja mais forte do que o medo de errar. Errar também é válido e serve de aprendizado. 


Errar não é fatal. Fatal é não agir por medo. 





Nota: O conto “Erro Fatal” foi publicado no livro: Cordilheira e outros descaminhos (Luciane Monteiro), 2023. 


Luciane Monteiro é paranaense, natural de Paranaguá. Graduada em Letras por amor à literatura, enredou-se na carreira docente, e sua avidez por compreender a mente humana a levou a iniciar uma jornada de estudos em Psicanálise. Escritora por paixão, gosta de mergulhar no universo feminino, masculino ou infantil, com o intuito de desvendar os nós de cada um, inventando novas possibilidades para cada realidade diante de seus olhos! Participou de diversas antologias e é autora de livros de literatura infantil, infantojuvenil, contos e romances, entre eles “Taça Escarlate”, “A última Tempestade”, “O Veneno Negro” e “Cordilheira e Outros Descaminhos”. Atualmente, mora no Canadá, onde faz parte do grupo Voix de Pasaj, cujo objetivo é difundir a pluralidade intercultural no Québec.


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