Por Chiara Santi
“O amor curará as asas de uma borboleta que voa em círculos”
-The Mission, Butterfly on a Wheel
Na coluna desse mês vou tratar de uma reflexão fornecida por uma grande e importante filósofa contemporânea: Bell Hooks. Mais especificamente a respeito do que ela entende como significado de amor. No livro Tudo sobre o amor: novas perspectivas Hooks chama atenção para a necessidade de se estabelecer uma definição clara para o que seja o amor, para que essa definição sirva de norte para a direção do amor como uma ação prática transformadora em nossas vidas. O amor é uma escolha clara e objetiva, que implica comprometimento com as consequências dos seus atos. Como Hooks sintetiza “Começar por sempre pensar no amor como uma ação, em vez de um sentimento, é uma forma de fazer com que qualquer um que use a palavra dessa maneira automaticamente assuma responsabilidade e comprometimento (HOOKS, 2021, p. 55)”. Logo, o amor não pode ser associado à ações de abuso e negligência. Porque escolher amar é se comprometer com a sua definição, que para a autora engloba e significa: cuidado, afeição, responsabilidade, respeito, compromisso e confiança (HOOKS, 2021, p. 55).
Identificando como um primeiro lugar em que somos ensinados sobre o que é o amor, Hooks aponta a família nuclear como a primeira escola para se aprender a arte de amar. Mas, infelizmente, na maioria das vezes, não aprendemos em nossas famílias sobre o que significa amar e ser amado. O amor transmitido às crianças é impregnado por uma linguagem confusa que mescla cuidado e punições severas. Na qual muitas crianças sofrem abusos físicos e verbais, é uma reação em cadeia que reflete um ciclo vicioso em que o amor foi confundido com práticas abusivas.
Por isso, Hooks diz que não pode haver amor sem justiça, defendendo os direitos básicos das crianças (HOOKS, 2021, p. 62). Como um disgnóstico, os pais precisam começar a introduzir limites amorosos às suas crianças. Ensinar as crianças assumirem responsabilidades pelos seus atos, em vez de focarem na correção dos atos com agressividade. Um exemplo desse ensino de responsabilidade é incentivar as crianças a serem responsáveis pela organização dos seus brinquedos. E promover, ao longo da criação, um espaço em que a escuta e o diálogo aberto com reflexão sejam incentivados entre pais e filhos. Para que prevaleça uma linguagem do amor curativa que preza pelos limites da sua definição: afeto, cuidado, respeito… como já foi citado no início do texto.
Para dar efetividade à uma ética amorosa, precisamos promover à justiça nas relações e a justiça está condicionada pela verdade. Porém, na contramão disso, a nossa cultura e educação foram moldadas para que não seja visto com bons olhos dizer a verdade. A verdade incomoda e gera desconforto, algo que muitos dizem: a verdade dói. Quando crianças nos ensinam que precisamos dizer a verdade, mas os adultos ao nosso redor mentem o tempo todo. Crescemos e essas máscaras caem, fazendo todo esse discurso pela verdade perder a validade. O modelo político patriarcal incentiva que os homens mintam e desconheçam os seus próprios sentimentos, para serem fortes e conseguirem poder. Da mesma forma, o patriarcado incentiva que as mulheres mintam e manipulem para conseguirem o que querem, até mesmo para a manutenção de esteriótipos que hoje em dia nem se sustentam mais, de que as mulheres são frágeis e burras, precisando de proteção masculina. O que as faz dissimular uma persona falsa no dia a dia para conseguirem aquilo que desejam. Hooks sinaliza que a prática do amor só pode ocorrer em contextos no qual se operem a verdade e a sinceridade, para que haja justiça em todos os relacionamentos.
Quando homens e mulheres são leais consigo mesmos e uns com os outros, quando amamos a justiça, compreendemos totalmente a miríade de formas pelas quais mentir reduz e desgasta a possibilidade de conexões significativas e carinhosas, o que levanta uma barreira para o amor (HOOKS, 2021, p. 84-85)
Para Hooks, dizer a verdade e buscar uma maior autenticidade sobre quem se realmente é, são atitudes essenciais para que o amor possa acontecer no contexto de todas as relações. Em oposição, a mentira e a dissimulação aparecem como empecilhos que impedem o diálogo expansivo entre as pessoas e a construção de laços sólidos e confiáveis. Para uma prática efetiva do amor acontecer, deve-se buscar a justiça com base na verdade do nosso coração. Do contrário, permaneceremos presos em um emaranhado de falsidades, enganos e ilusões. Para Bell Hooks, o amor precisa acontecer sob um contexto em que se opere a verdade sobre quem nós realmente somos e na promoção da sinceridade no convívio das relações.
O estabelecimento da verdade é o começo da abertura para a possibilidade do amor aparecer, mas, em primeiro lugar, o amor-próprio, conquistado pelo diálogo aberto que garante a autenticidade do autoconhecimento. Tanto que Bell Hooks elenca alguns pontos importantes para o amor-próprio acontecer verdadeiramente: viver conscientemente, autorresponsabilidade, autoafirmação, viver com propósito e ter integridade pessoal (HOOKS, 2021, p. 95). Assumir as rédeas da sua própria vida, olhar para si com consciência, fazendo boas escolhas para a sua vida e seus objetivos. Amor-próprio não tem a ver com egocentrismo, mas com aprender se nutrir e a promover uma vida para si que esteja cercada de realizações e plenitude. Fazer boas escolhas, cultivar bons relacionamentos, cuidar da sua casa, ter um trabalho que te realize ou que lhe ajude a conquistar os seus sonhos futuros. O amor próprio é então o caminho de cura para as feridas passadas e a descoberta da necessidade de que todos nós merecemos coisas boas e somos dignos de receber amor.
Para Hooks, outro aspecto fundamental do caminho em direção a uma ética amorosa, é o despertar espiritual. A partir de sua experiência pessoal, a autora reconhece como um fator muito importante os ensinamentos religiosos e a prática de serviço, meditação pessoal e orações diárias, como um meio de viabilizar o crescimento e a transformação interior para ser capaz de realizar a entrega para a arte de amar. Como ela diz “todo despertar para o amor é um despertar espiritual (HOOKS, 2021, p. 121). Contradizendo os valores de um mundo materialista e consumidor, cultivar os valores espirituais saciam a alma em prol das ideias que verdadeiramente importam. Na base dos ensinamentos de todas as religiões, todas carregam o apelo a um amor universal, que clama pela integração, respeito e apoio mútuo entre as pessoas, embora haja os fundamentalistas que insistem em deturpar os ensinamentos religiosos para fazer a manutenção dessa estrutura de poder e dominação. Mas como Bell Hooks já pontuou, sabe-se que o amor não pode compactuar com atitudes de opressão e violência. Os ensinamentos religiosos exigem uma coerência entre palavras e ações, logo, amar as pessoas de forma universal é fazer o possível para incorporar esses ensinamentos de amor na realidade e na comunidade na qual se está inserido.
Bell Hooks faz uma análise da cultura e da política contemporânea e a coloca centralizada em uma perspectiva de ganância, em que todos são vítimas de um narcisismo patológico, incentivados a todo momento a lucrar desenfreadamente e a só pensarem em si mesmos. No lugar do incentivo à caridade, ao compartilhamento, temos a primazia do acúmulo de riquezas e de uma pobreza extrema. Se existisse uma ética amorosa por trás das políticas públicas, nada disso aconteceria. Hooks observa, sobretudo no contexto cultural dos Estados Unidos, uma supervalorização da riqueza, do status e do poder. Ela observa que houve uma mudança de valores drásticas no modo de vida estadunidense, em que há um apelo constante de consumir de se conseguir dinheiro de forma fácil e rápida.
Como Hooks observa “De repente, não era mais importante incorporar uma dimensão ética à vida do trabalho; fazer dinheiro era o objetivo, não importa o meio. A prevalência da corrupção minou qualquer chance de que uma ética amorosa ressurgisse e restaurasse a esperança” (HOOKS, 2021, p. 143). Isso se reflete em uma política corrupta e em elevados índices de criminalidade. Na busca amorosa e por satisfação emocional, o amor é relegado a um espaço secundário e as relações também são encaradas como objetos que, se não estiverem mais satisfazendo suas necessidades, você descarta e joga fora, arruma outro. Porém, a busca por amor verdadeiro envolve compromisso e tempo. Nessa lógica do lucro e da ganância, nesse grande imperialismo do “eu”, as chances de uma entrega em favor do outro, como as obras de partilha e caridade, já não fazem nenhum sentido.
Dessa forma, Hooks também nos aponta a solução para sair desse emaranhado consumista e ganancioso, fazendo com que as pessoas reflitam e considerem sobre a relação que elas possuem com tudo ao seu redor, mais do que isolados, todos nós fazemos parte de uma grande comunidade global. E precisamos voltar nosso olhar para o que verdadeiramente importa, ao cuidado com os outros e do planeta. A viver uma vida com mais simplicidade, refletindo sobre os impactos de nossas ações no mundo. Porque o meio ambiente também precisa ser cuidado, ele é nossa casa, e já está mais do que na hora de repensarmos essa constante fonte de exploração das indústrias com a natureza.
Por fim, nos capítulos finais de seu livro e de sua reflexão sobre a importância da arte de amar e da promoção de uma ética amorosa, Hooks chama atenção para o fato de abraçarmos a vivência de uma comunidade por meio do amor e do compartilhamento de cuidados e experiências uns com os outros. Seja na vizinhança, no bairro, na cidade, no trabalho ou em uma congregação religiosa. É a percepção de que não fomos feitos para vivermos sozinhos, mas para estarmos juntos em comunhão. É daí que vem a nossa busca por um amor romântico, porque não queremos atravessar o decurso da vida sozinhos e ansiamos por uma conexão que seja verdadeira.
Para conseguirmos isso efetivamente, precisamos estar prontos para sermos totalmente transformados por esse caminho do amor. Um caminho de enfrentamento de dores, feridas e redenção. Por isso, faz-se importante ntender o significado do perdão para o caminho se tornar cada vez mais livre e leve. Para Bell Hooks o amor é uma profunda transformação pessoal, atrelada a um modo ético de viver todas as suas relações interpessoais. Sendo o amor uma abertura do coração para a verdade e para uma total entrega de si para a vida e todos ao seu redor, atraindo as pessoas e situações mais compatíveis com você. Quanto mais verdade você entregar para o mundo, o mundo vai orquestrar os melhores encontros e oportunidades para você. Como a autora diz “o amor nos salva apenas se quisermos sermos salvos (HOOKS, 2021, p. 199)”. É uma escolha que implica o compromisso com uma ação que só depende de nós mesmos.
ref: HOOKS , Bell; tradução Stephanie Borges . Tudo sobre o amor: novas perspectivas. São Paulo: Elefante, 2021.